Borracharia dá espaço a Ateliê na Vila Mathias, em Santos

A artista plástica Márcia Santtos é quem dirige a escola Gravurar, um espaço dedicado à criatividade e habilidade manual

Por: Carlota Cafiero  -  09/12/18  -  14:16
  Foto: Claudio Vitor Vaz

"Aqui, nós gravuramos". A frase, com o verbo subvertido, está gravada num banquinho de madeira dentro do ateliê da artista Márcia Santtos, na Vila Mathias. Aos 54 anos e com toda a carreira focada no desenvolvimento e ensino de sua arte em Santos, sua cidade natal, ela dirige, no mesmo prédio, sua própria escola, a Gravurar.


Inaugurado há três anos, num casarão onde funcionava uma borracharia, na Rua Anhanguera, número 18, o lugar abriga o ateliê de Márcia, uma lojinha com gravuras e uma galeria para realização de mostras e feiras de gravura.


É o único espaço dedicado à arte num pedacinho degradado de Santos, entre a Rua Silva Jardim e a Perimetral. O local se destaca dos outros imóveis por sua fachada bem cuidada, ao lado de um muro colorido – obra de uma intervenção artística promovida por Márcia e artistas convidados.


No térreo do ateliê, a artista recebe seus alunos para oficinas que ministra nas prensas manuais e de rolo. O lugar tem um ambiente agradável, ventilado e bem iluminado, equipado com uma pequena copa para a água e o cafezinho, um jardim de inverno, pia para a limpeza das matrizes e bancadas para a preparação das gravuras.


Das janelas no primeiro andar, onde fica a galeria, vê-se o prédio da antiga hospedaria da Cidade, construído para receber os imigrantes recém-chegados ao Porto. Há diversos outros edifícios históricos no entorno do ateliê e isto serviu de inspiração para uma nova série de gravuras iniciada por Márcia, na qual ela desenha as fachadas com todos os detalhes da passagem do tempo.


Para a impressão dessa nova série, a artista escolheu utilizar um material diferente: caixinhas de leite ou embalagens de tetrapark. Por meio da técnica da gravura em côncavo, ela risca o desenho na superfície de alumínio da embalagem, passa tinta e imprime essa matriz no papel.


“Embora esse patrimônio de prédios históricos não esteja conservado, ele conta nosso passado e nosso futuro”, reflete Márcia, que continua: “Para falar sobre isso, não fazia sentido usar gravura em metal, e comecei a trabalhar nessa caixinha de leite, um material que seria jogado no lixo e que estou recuperando. A técnica acabou dialogando com o que estou discutindo”. Ela expôs três trabalhos da nova série no 25º Salão de Arte, onde conseguiu Menção Honrosa.


Mas a artista também trabalha com matrizes clássicas, como placa de bronze. Enquanto conversava com a reportagem, ela imprimiu um retrato que fez de sua mãe, Nair, há três anos, quando a matriarca tinha 84 anos. “Na maior parte da minha obra, ou vocês vão ver crianças ou velhos. São os dois extremos da idade do homem que me atraem profundamente”, declara. O retrato faz parte da série Sabedoria, iniciada com um desenho de observação de sua mãe.


Márcia inicia o processo da gravação limpando a placa de bronze, para desoxidar a superfície, que receberá uma camada de tinta fresca. Ela usa uma mistura de vinagre e sal. “É o que a gente chama de saladinha”, brinca. Após a limpeza, é possível ver os traços do perfil de dona Nair sulcados com uma ponta de aço, diretamente na matriz.


Ela então aplica uma tinta à base de óleo de linhaça cozido. “(Essa tinta) é boa porque entra no sulco do metal e permanece lá durante a limpeza (do excesso)”, explica ela, que então prepara o papel Canson 300 gramas para receber a impressão: “Eu já umedeci o papel. O importante em gravura em metal é que o papel tenha gramatura alta. Este momento da impressão é um dos mais emocionantes da gravura, principalmente quando a pessoa está começando. Quando a gente está gravando, nunca tem noção completa de como vai ficar no papel”.


Necessidade de reprodução


Filha de bancários, Márcia tinha 16 anos quando descobriu a técnica da gravura num curso oferecido pela Secretaria de Cultura (Secult) de Santos. “Eu comecei na arte pela pintura e gostava muito de desenhar. Fazia um curso gratuito na Prefeitura, uma vez por semana. Na sala do lado, tinha aula de xilogravura (gravura com madeira). Foi quando eu vi aquela madeira que funcionava como um carimbo”, lembra.


Dali, a jovem passou na faculdade de Artes Plásticas na Universidade Santa Cecília (Unisanta), concluída em 1985. “Aí sim eu fui estudar a fundo a gravura e comecei a ter noção da diferença entre xilo e metal. Eu me apaixonei por metal. É de longe a técnica que mais gosto”, assume.


Ao concluir o curso, logo foi dar aulas e nunca mais parou. São mais de 30 anos lecionando em cursos livres, como no Grupo Gravura Mariana Quito, na Prefeitura, e em faculdades. “Sempre gostei de lecionar, mas juntamente com a professora, a artista continuou produzindo. A professora e a artista, no meu caso, dialogaram o tempo todo, se incentivaram mutuamente. Se eu tivesse sido só artista, dentro do ateliê, não seria a pessoa que sou hoje, nem minha obra seria o a mesma. Fico muito feliz em ter participado da formação de outras pessoas e ter aprendido muito também”, reconhece a gravadora, que atualmente leciona artes na faculdade de Arquitetura da Unisanta.


Pesquisas de materiais


Ao longo da carreira, Márcia se dedicou a pesquisar e utilizar outros tipos de material. Descobriu o policarbonato compacto a partir do compact disc, o CD. “Eu comecei a pegar mídias de CD e fazer gravação e impressão com os alunos em sala de aula. E vi que tinha um resultado muito bom. Fui pesquisar o material e descobri que era policarbonato”, conta.


Ela tem diversos trabalhos realizados com esse tipo de material, como o Olhar da Primeira Despedida, inspirada em texto de Patrícia Galvão, no qual descreve o momento em que se despediu do primeiro filho, antes de embarcar de navio para a Argentina. “É um texto muito poético e emocionante. Fiz esse trabalho baseado num retrato do meu filho”, diz a artista.


De tanto utilizar o policarbonato, Márcia transformou esse material em linguagem. “Tem gravura que só funciona com policarbonato, porque precisa do efeito que ele dá. A vantagem de pesquisar materiais não convencionais é que muitos deles viabilizam o ensino da gravura. A placa de cobre é bem mais cara”, compara ela, que concluiu mestrado sobre o uso de policarbonato na gravura, pela Universidade Estadual Paulista (Unesp São Paulo), em 2006. Quem se interessou em conhecer o Gravurar, pode entrar em contato com a artista, no (13) 98141-6395.


Confira o vídeo:



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