'Senhor Pizza' explica como o Brasil criou um estilo próprio para o alimento

O consultor baiano Ronaldo Ayres trabalha há 45 anos com pizzarias

Por: Stevens Standke  -  04/07/21  -  14:20
  Foto: Divulgação

Dos 6 para os 7 anos, Ronaldo Ayres se mudou de Salvador, na Bahia, com a sua família para a cidade de São Paulo, onde a sua vida mudou radicalmente. “A gente morava numa favela, na miséria”, lembra o baiano de 60 anos. Para ajudar a colocar comida na mesa de casa, ele começou a trabalhar, ainda pequeno, em uma pizzaria e se encantou por esse universo. Aí, aos 19, abriu a sua primeira pizzaria. Mais tarde, recebeu convite para dar aula sobre o preparo de pizzas para profissionais que atuavam na rede hoteleira, o que rendeu a oportunidade para se tornar consultor, acumulando experiências, inclusive, internacionais – na Itália, nos Estados Unidos e no Chile. Diante da alta demanda por seus cursos e por sua assessoria, Ronaldo deixou de ser dono de pizzaria para se dedicar totalmente à carreira de consultor. Assim, há 20 anos, fundou o Centro Tecnológico de Desenvolvimento de Pizzas e Massas do Brasil (CTP), na Capital, com módulos tanto para profissionais quanto para apreciadores de uma bela redonda.


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Na entrevista, o Senhor Pizza fala, entre outros assuntos, do processo de democratização da redonda, do impacto da pandemia no setor e conta se existe certo ou errado na hora de elaborar um novo sabor.


Você trabalha há 45 anos com pizza. Como vê a evolução dela no Brasil?


Hoje, a pizza é o segundo alimento mais consumido no mundo. Ela fica atrás apenas do hambúrguer. Mas, quando comecei nesse mercado, com 7 para 8 anos, a pizza ainda engatinhava aqui no País. De lá para cá, ela evoluiu tanto e se tornou tão dinâmica, que passou a atender todas as classes sociais. Quando se trata desse alimento, podemos basicamente dividi-lo em três setores: o que abrange a classe A, o voltado à classe B e o que atende as classes C, D e E. O reflexo disso é que, dependendo do lugar em que você vai, a pizza de muçarela pode custar R$ 120, enquanto, em determinadas pizzarias, a mesma redonda sai a R$ 10.


Qual a diferença entre uma e outra? A qualidade dos ingredientes, o que não significa que uma opção mais em conta necessariamente leve produtos que são ruins. Das pizzarias que existem no Brasil, 10% focam na classe A; 20%, na B; e 70%, nas classes C, D e E. Sem falar que você não vai encontrar redondas apenas nesses lugares. A pizza também foi incorporada por padarias, rotisserias, lanchonetes...


E ela acabou ganhando uma cara própria no Brasil, concorda?


É verdade. Na Itália, que tem toda uma tradição, os cardápios das pizzarias geralmente têm dez, 12 sabores. Já, aqui no País, existem mais de uns 100 tipos. Os italianos não admitem certas coisas. Por exemplo: eles acham um absurdo, um crime, a pizza doce. No máximo, preparam uma opção que leva fatias finas de laranja, mel, queijo brie e castanhas, que é considerada super-sofisticada e custa caro.


Tem algum ingrediente que, na sua opinião, realmente não funciona na pizza?


Tudo combina, a massa da pizza aceita qualquer cobertura.


No fundo, trata-se de uma questão de gosto. Quer ver só? A redonda de filé-mignon é bastante consumida no interior do Estado. Em contrapartida, na cidade de São Paulo, ela sai pouco. Em outras palavras: eu posso não curtir determinado sabor, mas, para outra pessoa, ele acaba sendo maravilhoso.


Há pizzarias no Brasil que possuem o selo italiano de origem e de qualidade, o chamado DOC?


São poucas. Para uma casa conseguir o certificado de que faz pizza do jeito italiano tradicional, ela deve atender uma série de critérios. Utilizar farinha 00 para preparar a massa é um deles. Para você ter ideia, o quilo de uma farinha normal custa por volta de R$ 4; o da 00 sai em torno de R$ 18. A pizza DOC também vai exigir um tomate san marzano italiano, cujo quilo custa aproximadamente R$ 14, contra R$ 3, R$ 5 dos tomates que costumamos consumir no dia a dia. A redonda certificada ainda deve levar uma muçarela de primeiríssima qualidade, com preço no patamar de R$ 40 o quilo, sendo que uma opção não tão top desse queijo sai, em média, a R$ 25 o quilo. Tudo isso reflete no valor da pizza DOC e no bolso do consumidor.


Outra diferença gritante entre a nossa pizza e a italiana é a cobertura. A nossa costuma ser, digamos, bem generosa.


Alguns países, inclusive, nos condenam nesse sentido, porque, se você for parar para pensar, a nossa pizza geralmente é quase uma torta. Mas essa é uma questão mais cultural. Prova disso é que, na Itália, o costume é fazer uma redonda com bastante massa, muito molho e só um pouco de cobertura, na qual a muçarela deve predominar, em comparação com os demais ingredientes. A ideia é sentir, acima de tudo, os gostos da massa e do molho.


O que orienta para quem sonha em abrir uma pizzaria?


A primeira pergunta que a pessoa deve se fazer é: para que público eu vou produzir pizza? É preciso ter uma diretriz, pois ela vai impactar em todo o negócio. Dados de mercado mostram que 70% das pizzarias fecham as portas no prazo de um ano; 15% têm movimento, mas as despesas e o faturamento ficam empatados; enquanto os 15% restantes conseguem ter lucro. Por que isso acontece? Porque a maioria das pessoas abre a pizzaria na emoção e coloca a razão de lado. Eu já tive 14 casas e as três primeiras quebrei por falta de experiência. É preciso ter um direcionamento para o negócio, estudar, buscar conhecimento, fazer planejamento de quanto vai custar o produto, de quais serão as contas fixas etc.


Dependendo do caso, você é categórico e diz que a pessoa não deve abrir uma pizzaria?


Sim. Teve uma vez em que um casal de ex-gerentes de banco me procurou, porque queria investir R$ 600 mil numa pizzaria. Só que eles falaram que não pretendiam trabalhar nos fins de semana e que iriam colocar um gerente para cobri-los nessas horas. Eu os aconselhei a não irem adiante, pois, na minha avaliação, não tinham o perfil necessário para um comerciante. Mesmo assim, o casal montou a pizzaria e, cinco meses depois, fechou as portas. Eles perderam metade do dinheiro que tinham inicialmente. Sabe, não é alugar um ponto e logo de cara montar o negócio. Antes de qualquer coisa, deve-se estudar o mercado, pelo menos, por um ano, buscar informação, fazer um curso. Afinal, o que mais falta é mão de obra qualificada. Vou dar outro exemplo. No começo do ano passado, eu estava em Roma, pois fui contratado por italianos para fazer um levantamento sobre o mercado brasileiro de pizza. Eles queriam abrir 30 casas aqui no País especializadas na pizza quadrada, a taglio. Só que, com o anúncio da pandemia, os italianos desistiram do investimento e deixaram comigo o primeiro ponto que tinham acertado em São Paulo.


O que fez nessa hora?


Como tudo estava fechando, foquei no delivery e procurei trabalhar com o público o conceito da pizza quadrada, que é algo com o que a maioria das pessoas não está acostumada. Estouramos em vendas e ainda colocamos no cardápio uma pizza doce de massa folhada, que foi outro sucesso. Os bons resultados me permitiram passar o ponto adiante, e quem comprou o negócio continua vendendo bem, pois foi um projeto estudado por quase um ano, que envolveu um plano piloto, treinamento etc. E é fato: durante a pandemia, um dos segmentos que mais cresceu e gerou empregos no delivery foi o da pizza. Mas o comerciante tem que saber se diferenciar dos demais, ele não pode fazer igual a todo mundo.


Além, lógico, do formato, o que distingue a pizza quadrada da redonda tradicional?


A pizza quadrada surgiu na Itália. A sua massa tem um preparo diferente, que confere uma maior crocância a ela. A taglio ajuda a fazer com que a pizza seja consumida o dia inteiro pelo italiano e, inclusive, no almoço, o que não acontece aqui no Brasil, por uma questão mais cultural. Na Itália, as pizzarias abrem desde cedo e as suas vitrines mostram as opções disponíveis, com as coberturas ainda por assar. A pizza quadrada é boa nesse sentido, pois a pessoa escolhe o sabor desejado, o atendente corta o pedaço, leva ao forno apenas aquela fatia e o cliente sai comendo a pizza fresquinha e quentinha. Também se deve considerar o seguinte: na Itália, a pizza redonda é individual, do tamanho do prato, ela não rende oito pedaços como a nossa. Um outro ponto interessante: o italiano não vai gostar nem um pouco de você pedir um sabor diferente para cada metade da pizza.


Na Itália, a pizza redonda e a quadrada competem entre si?


Há espaço para a duas, elas são distintas. Acho que vale dizer que está sendo desenvolvida aqui no Brasil uma campanha para estimular as pizzarias a não funcionarem somente à noite. Elas podem abrir de dia, de repente, vendendo pedaços de pizza, para aproveitar o ponto ao máximo e tentar aumentar o faturamento, ainda mais nos dias de hoje.


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