Semana Mundial do Brincar levanta debate sobre o reflexo da pandemia na atividade

Em 2021, com as restrições impostas pela pandemia, os desafios para propiciar o lúdico aos pequenos são ainda maiores

Por: Alcione Herzog e Willian Guerra  -  23/05/21  -  12:05
  Diversão levada a sério
Diversão levada a sério   Foto: Adobe Stock

O direito de brincar é coisa séria! Garantir uma infância digna e saudável às crianças significa garantir o desenvolvimento de seres humanos capazes de construir uma sociedade fundada na cultura de paz, na sustentabilidade ambiental e no respeito às diferenças. Baseada nesses pilares, a Semana Mundial do Brincar tem sido promovida em vários países, sempre na última semana de maio.


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Em 2021, com as restrições impostas pela pandemia, os desafios para propiciar o lúdico aos pequenos são ainda maiores. Se brincar é exercitar a sociabilidade, dar vazão à curiosidade, correr, descobrir espaços e possibilidades de movimentos, como fazer tudo isso num cenário de isolamento social, evitando-se aglomerações e, muitas vezes, tendo de lidar com o luto nas famílias por conta das mortes causadas pelo coronavírus?


É uma tarefa difícil, mas possível e necessária, responde Letícia Zero, coordenadora da secretaria executiva da Aliança pela Infância, entidade organizadora da Semana Mundial do Brincar. Ela reforça que o brincar é um direito da criança e analisa que, em tempos de crise, geralmente direitos de diferentes naturezas costumam ser mais negligenciados. Na atual conjuntura, vale ponderar que o dia a dia de pais, mães e cuidadores “foi revirado completamente e colocado de cabeça para baixo”, afirma.


Os adultos estão lidando com preocupações objetivas e de ordem prática, rotinas mais tumultuadas, restrições de circulação e convivência, principalmente em espaços fechados, reduzindo as possibilidades de lugares para brincar. Com tudo isso, para Letícia, fica mesmo difícil para os adultos exercerem o seu papel de garantir lazer para os pequenos.


“Nesse momento, os adultos são desafiados, quanto à sua criatividade e repertório, para criar mais brincadeiras, para fazer com que o brincar aconteça. A minha sugestão é que os mais velhos tenham um olhar amoroso para o que é possível nesse contexto atual e lembrem sempre que o brincar vai além da brincadeira, que a criança se diverte com elementos não estruturados, como tecidos para fazer cabanas ou caixas para construir o que a imaginação mandar”.


Portanto, quando os pequenos nos acompanham em situações como arrumar uma mesa, estender roupas no varal e lavar a louça, eles também estão brincando. “O brincar não é apenas o que ocorre durante a brincadeira propriamente dita. A criança nunca para de brincar! Não importa a crise, nem o que esteja acontecendo ‘lá fora’, ela sempre brinca, pois essa é a sua linguagem. É essa a espontaneidade que permeia tudo o que ela faz e a maneira com a qual se relaciona com o mundo e com as pessoas à sua volta”, detalha.


É impossível não lembrar do filme A Vida é Bela, em que um pai cria todo um contexto cheio de jogos, abusando da imaginação, para tentar proteger o filho dos horrores reais de um campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.


Hora de se reinventar


Para suprir a falta de brincadeiras dos filhos com os amigos da escola, do prédio ou da rua, muitos pais também tiveram que queimar os neurônios e se desdobrar.


A arquiteta Martha Fernández e o jornalista Rafael Cicconi contam como tem sido essa experiência. O filho Gabriel, de 4 anos, havia acabado de entrar na escola quando começou a pandemia. Martha, que pretendia retomar a carreira profissional, precisou adiar a ideia. Já Rafael teve de conciliar freelas e o trabalho fixo para manter a casa. E em meio a todo esse furacão trazido pela covid-19, era preciso dar a devida atenção a Gabriel, uma criança cheia de energia que estava doida para conhecer o mundo e fazer amigos.


“Nós éramos de Guarujá, mas decidimos morar em Jundiaí para ter uma melhor qualidade de vida. Só que, com a pandemia, o nosso círculo de amizade se restringiu à minha prima. Então, foi complicado; o Gabriel sentiu bastante no começo”, conta Rafael.


Entreter uma criança durante o dia é tarefa hercúlea. Sem a possibilidade de sair de casa, o cenário beira ao dos filmes da franquia Missão Impossível. A reinvenção do casal foi resgatar o passado. “Busquei brincadeiras na internet e fizemos jogos de amarelinha, por exemplo. O Gabriel não conhecia e acabou sendo um grande passatempo pra gente”, observa Martha Fernández.


A mesma técnica foi adotada por Andréia Amarante e Romulo Moreira, pais de Bernardo, de 6 anos, e Betina, de 1. “Decidimos resgatar brincadeiras, jogos e desenhos da nossa época. O Bernardo não conhecia o Sonic, por exemplo, e gostou muito do personagem. Jogamos também mais futebol no quintal de casa. Isso ajudou, porque ele estava triste por deixar a escola e a natação”, diz Andréia, que é professora.


A tentação das telas


Mesmo cientes de todo o prejuízo que as telas podem causar, alguns pais, ao ver as opções de entretenimento dos filhos minguarem com a pandemia, cederam aos apelos do mundo digital. Mas, com o confinamento em casa, novos jogos e brincadeiras acabaram saturando alguns pequenos e deram espaço para desenhos e clipes musicais.


A fim de evitar os excessos, a Sociedade Brasileira de Pediatria lançou, em 2020, um manual com orientações sobre o uso de telas e o tempo gasto na web. No material, a SBP aponta que a exposição excessiva da criança aos eletrônicos contribui para o desenvolvimento de transtornos de saúde mental e problemas comportamentais. A entidade indica limites de tempo, de acordo com cada faixa etária. Para menores de 2 anos, o recurso não deve ser utilizado; já se tratando de crianças entre 2 e 5 anos, o uso das telas não pode ultrapassar uma hora por dia; pequenos de 6 a 10 anos devem respeitar o limite de duas horas diárias; e aos adolescentes entre 11 e 18 anos, o recomendado é não exceder três horas por dia e nunca deixar que eles “virem a noite” entretidos por esses dispositivos. Além disso, nada de telas durante as refeições, e deve-se cuidar para que os pequenos se desconectem uma a duas horas antes de dormir. Essas duas últimas orientações são válidas para todas as faixas etárias. Confira o manual completo da SPB acessando este link.


A rua como refúgio


Cansadas do isolamento social e tentando cumprir as recomendações para o uso de telas, as famílias procuraram ainda administrar o medo de pegar covid-19. Alguns pais e filhos, diante disso, por estarem machucados em sua saúde mental pela quarentena, viram a rua como refúgio.


“O Gabriel estava muito apegado a um tablet que temos. Então, decidimos dar algumas voltas em uma praça. Por ser um espaço aberto e de pouca movimentação, ele se sente à vontade para correr e brincar”, conta Rafael Cicconi, enfatizando que todos seguem as orientações sanitárias.


Como mais um modo de driblar as telas, Andréia Amarante aproveitou as caminhadas pelo bairro para ocupar o tempo livre dos filhos. “A Betina vai no carrinho e o Bernardo anda ao meu lado. Percebi que, desde que adotamos esse hábito, ele melhorou muito e está até mais calmo”.


Múltiplos benefícios


O psicólogo Roberto Debski lembra que os reflexos na vida de uma criança que não brinca, ou que brinca muito menos do que o ideal, podem se manifestar na vida adulta. “É fundamental proporcionar uma infância rica em brincadeiras para o desenvolvimento dos indivíduos. O brincar tem impacto direto nos aspectos físico, cognitivo, afetivo e social”, ressalta.


Dessa maneira, a criança aprende a se expressar, a se relacionar com os outros, a lidar com o seu próprio corpo e os seus movimentos, a ponderar riscos, perigos e superá-los. “Ela aprende também a se frustrar e a celebrar. No brincar está presente o exercício de valores como tolerância, resiliência, diversidade. Todos esses aspectos são fundamentais para se ter uma vida plena e digna, e eles ficam prejudicados quando a criança não tem oportunidades de brincar”, afirma Letícia Zero. Tais carências podem, inclusive, se estender à adolescência e à maioridade. “Claro que depois é possível trabalhar essas lacunas com terapia, por exemplo. Mas o ideal é que isso não seja preciso, que o futuro adulto possa passar pelas diferentes vivências lúdicas nas suas respectivas fases de crescimento e amadurecimento”, complementa o psicólogo.


Coisa de gente grande


E vale reforçar que, na vida adulta, o lúdico continua sendo muito importante. Para Letícia, precisamos resgatar nossas memórias lúdicas, os jogos e lembranças da infância. “Do que brincávamos? Quais eram as nossas sensações? O que isso significou na nossa vida? É importante revirar esse baú lúdico, pois ele conecta todos nós com o que é mais humano e essencial, com a nossa espontaneidade, com a nossa alegria”.


Na letra da música Brincar de Viver, famosa na voz de Maria Bethânia, o chamado é justamente esse: “redescobrir seu lugar, pra retornar e enfrentar o dia a dia, reaprender a sonhar” e exercitar a “arte de sorrir”.


É por isso que a coordenadora da Aliança pela Infância insiste que, antes de tudo, brincar é um direito extensivo a todas as faixas etárias. O adulto também deve encontrar o lúdico nas atividades cotidianas. Há espaço para o aspecto recreativo nas fases maduras. “Basta manter aquele estado de constante investigação do mundo ao redor, de curiosidade, descoberta e criação”, aconselha Letícia.


Pergunte-se: em quais atividades da sua vida adulta você encontra isso? Pode ser olhando o céu e observando as nuvens, alimentando um hobby de marcenaria, cozinhando receitas especiais aos finais de semana ou mesmo trabalhando e se relacionando com mais leveza. Com os pequenos e também sem eles, decrete: “Agora é brincar de viver”.


A Semana Mundial do Brincar conta com programações em várias cidades Brasil afora, incluindo as da Baixada Santista – geralmente coordenadas pelas prefeituras. No caso de Santos, as informações sobre as atividades podem ser obtidas neste link.


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