Leandro Guilheiro fala da aposentadoria no judô e dos seus planos daqui para frente

O medalhista olímpico relembra ainda momentos especiais da sua trajetória

Por: Stevens Standke  -  31/01/21  -  11:01
  Foto: Foto Alexsander Ferraz

Atleta dedicado e focado ao extremo, Leandro Guilheiro sabia desde pequeno que iria fazer história no judô brasileiro. O que não podia imaginar era que ia conquistar duas e não uma medalha olímpica, como sonhava – um bronze em 2004 em Atenas (Grécia) e outro terceiro lugar em 2008 em Pequim (China). Sem contar que também ganhou uma medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara (México) em 2011 e duas (prata e bronze) em mundiais.


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Apesar de ter nascido em Suzano (SP), foi em Santos que Leandro cresceu e brilhou, tendo, muitas vezes, de lutar contra a dor gerada por lesões e inflamações, que o fizeram passar por 12 cirurgias. Superfamília, encontrou principalmente na mãe suporte valiosíssimo, para os bons e maus momentos. “Ela sempre se fez presente e foi importante em todos os aspectos. As pessoas mais próximas da família do atleta acabam se tornando, entre aspas, uma espécie de equipe multidisciplinar. Em diversas ocasiões, minha mãe foi minha fisioterapeuta, nutricionista, psicóloga... Posso dizer que tive essa sorte! Jamais vou esquecer quando estava com 7 anos: minha mãe perguntou se queria ser matriculado na academia de judô e respondi que sim. Ela, então, falou: ‘Você vai ter de assumir responsabilidades. Dê sempre o seu melhor, porque de gente medíocre o mundo já está cheio’. Essa é uma máxima que tenho levado para a vida”, comenta.


Em dezembro, Leandro pôs um ponto final na sua trajetória de 31 anos no tatame, ao anunciar sua aposentadoria, depois de passar por um intenso processo de autoanálise. No bate-papo a seguir, o eterno judoca, que está com 37 anos, comenta seus planos daqui para frente e relembra momentos curiosos e marcantes.


APOSENTADORIA O que levou em conta para decidir parar de lutar e competir?


Foi um processo. Em dezembro de 2009, voltei de uma competição no Japão e senti que estava meio difícil para manter os treinos. No dia 1º de janeiro, eu ia viajar para a Europa, para continuar me preparando para as próximas lutas. Não entendia direito o que estava acontecendo. Na Europa, também rendi abaixo do meu desempenho habitual. Aí, retornei para o Brasil e, três semanas depois, ia disputar o Grand Slam de Paris. Nesse meio tempo, comecei a me questionar, em relação ao judô e a tudo que andava fazendo. Olhava para os parceiros de treino e notava que, em termos de motivação, eu estava um pouco à parte. Acabei sendo eliminado no Grand Slam de Paris e tive a sensação de que era uma espécie de despedida das grandes competições, pois aquele torneio significava muito para mim; eu já o havia ganhado. Teve outro ponto importante: não ia conseguir mais me classificar para os Jogos Olímpicos, caso eles acontecessem no ano passado. Ficou bem claro que realmente era a hora de parar. Em seguida, veio a pandemia e o isolamento social. Fiquei trancado em casa, sem treinar, nem colocar o quimono. Em nenhum momento, senti falta de estar no tatame. Isso foi bastante expressivo, confirmou que devia mesmo me aposentar.


Por que só agora tornou essa decisão pública?


Essa é uma coisa interessante. Na minha cabeça, eu não precisava falar para ninguém que havia parado. Achava que, da mesma forma como entrei no judô anonimamente, também poderia me aposentar anonimamente. Com a flexibilização do isolamento social, pessoas próximas falaram que devia divulgar que tinha encerrado a carreira de atleta, porque muita gente não sabia e isso poderia bloquear o meu caminho dali em diante. Resolvi, então, fazer uma postagem no Instagram para mostrar que estava fechando um ciclo e iniciando outro. Meses antes, já havia publicado imagem saindo do tatame do (Esporte Clube) Pinheiros, em São Paulo, para indicar que estava me aposentando, só que meus amigos disseram que devia ser mais direto, mais objetivo (risos).


Você é super-reservado, né?


Sou bem na minha, em todos os sentidos. E eu sempre quis que o meu trabalho falasse por si só, entende? Também não via muito espaço para fazer outras coisas enquanto estava treinando. Na verdade, apenas sei proceder assim, desse meu jeito. Gosto de focar, de me dedicar para valer e acabo ficando sem tempo para outras atividades. Me surpreendi com a repercussão do anúncio da minha despedida das competições. Recebi um monte de mensagens, tanto carinho! Como atleta, sempre vivi atrás dos meus sonhos e nunca percebi, de fato, como a minha história tocava e até influenciava as pessoas. Chegaram relatos, por exemplo, de gente que começou a fazer judô por minha causa.


  Foto: Foto Alexsander Ferraz

EQUILÍBRIO O que vem à sua mente quando pensa no judô?


A minha vida, de certa forma, foi moldada para que eu conseguisse atingir os meus objetivos enquanto atleta. Como isso era muito importante para mim, me adaptava, tentava amadurecer e evoluir, tudo por causa do judô. Essa é a realidade. Sem o esporte, eu seria uma pessoa completamente diferente. Tenho consciência de que o judô me trouxe um nível de autoconhecimento que dificilmente atingiria de outro modo; ele mudou bastante a maneira como enxergo eu mesmo, as pessoas e o mundo. O que fiz no tatame transcendeu, sabe?


Quais foram os maiores aprendizados nestes 31 anos de carreira?


Entendi que a gente tem uma capacidade de realização, superação e adaptação muito grande. No esporte, você lida com situações bem adversas o tempo inteiro e vai insistindo, se ajustando até realmente melhorar e, com paciência, realizar o que se propôs e deseja. Houve momentos em que eu mesmo não acreditava na minha capacidade, mas não tenho receio de tentar algo novo. Aprendi que a derrota nos leva a dar uma virada de chave e, assim, nos aproxima da vitória. Encaro a vida muito desse jeito: a gente deve experimentar coisas novas, estar disposto a falhar e se reconstruir, tentando fazer nosso melhor quantas vezes for necessário.


É seu pior crítico?


Sempre fui! Em compensação, nunca me preocupei tanto com a cobrança alheia. Mas, algumas vezes, a minha autocrítica se tornou um problema, pois gerou ansiedade e um monte de coisas que acabaram interferindo no meu desempenho, principalmente quando eu era adolescente. Com o tempo, aprendi a equilibrar isso, a transformar a autocobrança em algo construtivo.


DOR Como anda a sua saúde agora que parou de lutar?


A minha coluna é bem machucada, tenho algumas hérnias. Não posso descuidar dessa parte do corpo em hipótese nenhuma. Mas vou te falar: faz um ano que não coloco o quimono e luto; desde então, não senti mais nenhuma dor que me incomode ou incapacite. Como tenho procurado descansar, acho que as pequenas lesões e inflamações que tinha acabaram se resolvendo. Hoje, estou bem de verdade, tranquilo, não tenho feito tanta atividade física. Em algum momento, devo voltar a praticar algum esporte, de forma moderada.


Deve ter bastante tolerância para a dor.


O meu linear é muito alto. Para você imaginar, lutei uma Olimpíada com hérnia de disco. Só quem tem esse problema sabe a dor que é... E disputei os Jogos Olímpicos de Atenas com a mão quebrada. Algumas das minhas lesões surgiram justamente porque não quis interromper os treinos quando estava com dor, sendo que aquele era um sinal de que deveria ter dado um tempo para cuidar da minha saúde. Isso sempre gerou um conflito interno. Para mim, parar era como se estivesse desistindo, me dedicando menos do que deveria. Precisei ter várias lesões, passar por bastante sofrimento e fazer 12 cirurgias para entender que não tinha que me sentir culpado por dar um tempo nos treinos e nas competições, para cuidar do meu bem-estar.


  Foto: Foto Alexsander Ferraz

ADOLESCÊNCIA Que tipo de coisa deixou de fazer em nome da carreira?


Lembro que, na adolescência, enquanto o pessoal ia, por exemplo, para a praia, eu ia treinar, nem que fosse para ajudar colegas que se preparavam para uma competição. Mesmo com o bom desempenho, achava que tinha que voltar o quanto antes para o treinamento, senão poderia me perder no caminho, pois, quando você se destaca, não faltam convites para eventos, festas etc. Tentei me blindar nesse sentido, para não perder o foco. Talvez tenha sido caxias demais, só que esse era o jeito como eu sabia fazer as coisas. Estudava de manhã, almoçava, descansava um pouco e, aí, treinava das 15h30 às 20h30 ou 21 horas, todo dia. A minha adolescência foi treino, treino, treino. Optei por me dedicar ao esporte, fiz o que considerava necessário para alcançar os meus objetivos. Como resultado, aos 21 anos, conquistei a minha primeira medalha olímpica e ainda tinha uma vida inteira pela frente para fazer diversas coisas, como sair com os amigos.


Não se arrepende de nada?


De modo algum! A partir do momento em que conquistei a medalha olímpica, comecei a equilibrar a minha vida, em vários aspectos, até porque, depois que a gente fica adulto, a carga horária de treino diminui, mas a intensidade aumenta. Mesmo assim, continuei sendo um cara bastante preocupado com a minha carreira. As atividades paralelas que fazia eram mais pegar uma praia, um cinema, sair para jantar com os amigos ou viajar. Não sou de noitada, de ir para barzinho... Antes da pandemia, já aposentado, pulei Carnaval pela primeira vez de verdade e fiquei destruído. É difícil para as pessoas em geral entender as opções que fiz. Fui muito questionado, principalmente durante a adolescência.


Sente que, de certo modo, também abdicou da sua vida amorosa?


Na adolescência, não tive nenhum relacionamento longo, só relações curtas, pontuais. Aí, namorei por mais de cinco anos a Roberta (Lima, nutricionista com experiência no meio esportivo) e, depois, voltei a focar totalmente na carreira. A vida de atleta não é fácil, não é legal, não é divertida. Mas, acima de tudo, conquistei o que desejava.


ORIGENS Como o judô entrou na sua vida?


Quando tinha 5, 6 anos, o colégio começou a ter aulas de judô e pedi para minha mãe me matricular. O esporte me fascinava de um jeito que não sei explicar. Acho que nasci para isso, é a melhor resposta que posso dar. Após dez meses de aula, fui treinar em academia, onde o foco passou a ser o alto rendimento. O pessoal mais velho me abraçou de uma maneira! Eles me emprestavam fitas VHS de torneios internacionais e eu ficava observando os atletas, para ver o que poderia melhorar. Na minha cabeça, não existia a possibilidade de não ir para a Olimpíada um dia. Tinha certeza de que ia conseguir.


E qual é o balanço do período em que competiu pelas Forças Armadas?


A cada quatro anos, acontecem os Jogos Mundiais Militares, que são uma espécie de Olimpíada. Na edição de 2007, o Brasil havia conquistado bem poucas medalhas e, como o País sediaria o torneio em 2011, as Forças Armadas, por não conseguirem completar a sua equipe com oficiais, decidiram fazer parceria com as confederações esportivas, para reunir os melhores atletas. O processo se deu por meio de edital e consistiu numa análise de currículo. A seleção brasileira de judô em peso foi para as Forças Armadas. Inicialmente, a equipe masculina ficou no Exército; a feminina, na Marinha. Com o tempo, começou a misturar um pouco. Como sou curioso, gostei de participar do curso para me formar sargento temporário. Sempre vou lembrar com carinho dessa experiência, que durou de 2009 a 2017. Nós, atletas, só tínhamos de ir de vez em quando para o quartel; nosso foco devia estar nos treinos. A despedida foi superbonita. Rolou, inclusive, uma formatura. E continuo amigo de alguns comandantes.


FUTURO O que pretende fazer daqui em diante?


Não há nada certo ainda, existem algumas possibilidades. Estou precisando justamente de um tempo para definir qual caminho vou tomar. Não me vejo como treinador, nem como gestor, mas quero contribuir com o esporte, especialmente com o judô. As pessoas me cobravam um maior engajamento nas redes sociais e tenho gostado de fazer isso. Procuro falar sobre o judô, dividir as minhas experiências. E como sou formado em Gestão Financeira e Matemática, vejo que posso fazer análises esportivas de uma forma que ninguém fez até agora. Tenho estudado isso, só que, para dar o meu próximo passo, vou precisar me sentir bastante seguro, pois vou me dedicar de verdade, como sempre.


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