Família multiespécie: animais são cada vez mais reconhecidos como filhos, irmãos e netos

O conceito, que também é uma realidade em lares da região, têm sido discutido no âmbito psicológico e juridicamente

Por: Beatriz Araujo  -  05/09/21  -  10:27
 Nas famílias de Any, Noha e Vânia, os animais vão além de
Nas famílias de Any, Noha e Vânia, os animais vão além de   Foto: Reprodução

O amor é capaz de transpor inúmeras diferenças - inclusive, as das espécies. Em meio a isso, há um conceito cada vez mais latente, o da ‘família multiespécie’. Em seu novo livro, Just Like Family: How Companion Animals Join the House, a socióloga da Southern Methodist University, Andrea Laurent-Simpson, afirma o que a maioria dos tutores de animais de estimação já sabe - a estrutura familiar norte-americana está mudando para incluir espécies não humanas, e as implicações são enormes. “Cães e gatos são tratados como filhos, irmãos, netos. Na verdade, a American Veterinary Medical Association descobriu que 85 por cento dos donos de cães e 76 por cento dos donos de gatos consideram seus animais de estimação como uma família”, disse a autora em entrevista à revista científica Phys Org.


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No Brasil, isso não é diferente. Esse amor multiespécie faz parte da rotina, por exemplo, da santista Noha Cunha Mahmoud, de 23 anos, que conta com três filhos em seu lar: os gatos Pituca e Faísca, de 2 e 3 anos, e a pitbull Mayla, de 3 anos. Na casa também mora o André Carvalho de Souza, de 35 anos. noivo de Noha e pai dos animais.


A conexão do casal com estes filhos é profunda. Inclusive, a história dos dois começou por meio da Mayla. Há cerca de um ano, durante um passeio, a cachorra se assustou com o barulho do skate que André estava andando. Foi nesta situação inusitada que eles se conheceram. “Compartilhar a vida ao lado dessas meninas me ensinou o valor real de ter e ser uma família. Essa é minha família”, diz André.


Já com relação aos aprendizados dessas relações, Noha conta que nunca foi fã de socializar, mas que cuidar de Mayla a “obriga” a isso - o que a fez conhecer muitas pessoas especiais. Noha avalia que amor, paciência e responsabilidade também são pontos enriquecidos nessa troca de experiências.


“Animais vão além de ‘pets’. São seres que mantém relações de familiaridade, compaixão e instinto de sobrevivência, assim como nós, pessoas humanas. Precisamos dar voz àqueles que não tem”.


A psicóloga Vanessa Monteiro Bizzo Lobo complementa esse olhar, ressaltando que a convivência com animais pode trazer benefícios terapêuticos, que auxiliam no tratamento de depressão, ansiedade e estresse.


Contudo, em meio às novas configurações de famílias - que estreitam, cada vez mais, os vínculos -, é importante que as pessoas saibam que os animais não devem ser acolhidos para “suprir lacunas” das pessoas. Isso porque “os animais não são nossas coisas. Não são objetos. Eles são seres, independentes dos desejos do ‘dono’”, assim como um filho humano, por exemplo.


Por isso, para a psicóloga, quem maltrata um animal também é capaz de maltratar um filho humano, uma esposa ou um vizinho. E assim como cada pessoa tem que ter seu espaço e identidade preservada, os animais também precisam ter.


Na casa da santista Vânia da Costa, de 53 anos, por exemplo, as características de cada membro da família são respeitadas à risca. Lá, além dela, mora sua mãe Glédis da Costa, de 81 anos, quatro gatos e um cachorro - filhos de Vânia e netos de Glédis. A família começou a crescer em 2010, com a chegada da cachorra Maria Vitória, de 11 anos. Depois veio Bento, um gato de 6 anos adotado em 2017. Por fim, em dezembro do ano passado, a família acolheu a gata Panqueca, que estava grávida e deu luz a cinco crias - dessas, duas seguiram na casa: Cocada e Paçoca.


Vânia conta que a casa ainda está em processo de integração. O filho Bento é mantido em um cômodo separado da filha Panqueca e seus filhotes, A cachorra Maria Vitória, a primogênita, também é mantida em um outro espaço, pois não gosta de interarir com os outros animais do lar. Em meio à isso, Vânia e Glédis vão se revezando ao longo do dia, para dar atenção e carinho a todos os animais.


“É uma vida engraçada, porque por enquanto não convivemos todos no mesmo ambiente”, comenta Vânia. Mas, mesmo assim, foi nesta família multiespécie que ela encontrou forças durante a pandemia, quando enfrentava um quadro depressivo. “Não sei o que seria da minha vida sem esse seres maravilhosos e tão iluminados. Não me vejo sem eles".


Amor na dificuldade

Famílias multiespécies também se amam na saúde ou na doença. Um exemplo é a história da Duda, uma cocker de 14 anos, que mora com sua mãe Any Elise Pereira dos Santos, de 56 anos, seu pai Sandro Oliveira, 46 anos, sua irmã mais velha Priscila Assis, 38 anos, e seu sobrinho, Miguel, de 2 anos. “A Duda é filha, irmã e tia. Eu gosto dessas palavras”, comenta Any.


A Duda, em 2019, após uma infecção no aparelho reprodutor, que a levou a um cirurgia de emergência, teve um caso de alta pressão dos dois olhos e acabou tendo que retirá-los. “Rezamos muito para São Francisco, tivemos uma assistência maravilhosa e ocorreu tudo bem”, diz Any, com gratidão. Desde então, as coisas são mantidas nos mesmos lugares na casa, para que Duda não se perca e consiga fazer suas atividades cotidianas. O lar vive em harmonia, tendo o amor como princípio maior. “O amor é feito de quatro patas”.


Os dados comprovam

No Brasil, 31% dos tutores de cachorros e 27% dos de gatos os consideram como filhos. O índice se manteve contínuo com relação aos felinos e aumentou no caso dos cães, que em 2019 registrava 24%. Os dados são da pesquisa nacional Radar Pet 2021, realizada pela Comissão Animais de Companhia (Comac), do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Saúde Animal (Sindan).


Além disso, no geral, 28% dos tutores de cachorros e 26% dos de gatos consideram os pets como membros da família. Em 2019, os índices eram de 25% e 21%, respectivamente.


Em contrapartida, houve uma queda significativa nas pessoas que consideram os animais como “bichos de estimação”. No caso dos cachorros o percentual decresceu de 23%, em 2019, para apenas 7% neste ano. No caso dos felinos, a queda foi de 29% para 13%.


Legislação

O conceito de família têm se tornado cada vez mais múltiplo e abrangente. Mas, no caso dos animais, eles ainda são reconhecidos como “coisas” para o Código Civil, como explica a advogada Ana Maria Pena Rodrigues Coelho. “Os animais são ‘bens semoventes’, como se fossem móveis que andam. E até hoje grande parte dos juristas encara os animais dessa forma”.


Porém, a advogada analisa que esse entendimento está se transformando, com uma vertente mais moderna ganhando reconhecimento e rompendo com paradigmas dos estereótipos de família. “Nessa corrente moderna, e aceita em tribunais, os animais são encarados como seres sencientes, que tem sensações e diferenciam bom e ruim”. Então, embora o Código Civil ainda os trate como seres semoventes, subjetivamente é possível usar o poder familiar do código civil em relação a eles.


Em meio à isso, as famílias multiespécies também enfrentam dilemas jurídicos, como a questão da guarda compartilhada ou unilateral. Ana Maria explica que, assim como acontece com “filhos humanos”, quando pessoas se separam e possuem animais, a questão pode entrar na área da vara da Família e Sucessões.


Caso não haja um acordo entre as partes, pode haver essa ação de guarda - pois o bichinho precisa de alimentos, acompanhamento veterinário e outros cuidados que devem ser de responsabilidade de alguém. “Não é que é o ‘moderno’. Essa é a realidade. As famílias têm que ser encaradas por uma visão muito mais multifacetada”.


Além disso, a proteção aos animais também tem ficado mais forte juridicamente. No ano passado, foi sancionada uma lei que aumenta a punição para quem abusa ou maltrata animais. Agora, além de multa e proibição de guarda, a pessoa pode ter pena de reclusão entre dois e cinco anos.


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