Equilíbrio: Especialistas explicam a importância de crianças se divertirem longe das telas

Brincadeiras ao ar livre e atividades lúdicas reforçam laços e ensinam

Por: Alcione Herzog  -  10/10/21  -  08:05
 Catarina é mãe Antonio, de 9, e de Gabriel, de 6
Catarina é mãe Antonio, de 9, e de Gabriel, de 6   Foto: Alexsander Ferraz/AT

Mais do que qualquer outra data, pensar no Dia das Crianças é tirar do baú de memórias imagens felizes da infância: empinar pipa, jogar futebol de botão, pular amarelinha, subir em árvore ou chamar os amigos para uma disputa de taco. Com tempo bom, nada melhor do que fazer castelos de areia na praia ou programar um piquenique no parque. Em caso de chuva, improvisar cabanas com lençóis e imaginar um mundo inteirinho de aventuras entre o sofá e a estante da sala podia durar horas.


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Se você tem mais de 30 anos, certamente se identifica com uma ou mais cenas descritas acima ao olhar a vida pelo retrovisor. Porém, ao mesmo tempo, sabe que momentos assim são cada vez mais raros no cotidiano das crianças nesta era digital.


Especialistas das áreas da Psicologia, Pediatria e Educação concordam que a pandemia reforçou os benefícios da revolução tecnológica, porém também impôs difíceis desafios para todos.


Um deles foi o maior apelo das telas no dia a dia. A tentação já existia antes, mas agora se mostra ainda mais potente, com reflexos importantes na saúde mental.


Para os pequenos, o mundo virtual passou a roubar mais horas preciosas que poderiam ser aproveitadas com brincadeiras cheias de movimento e imaginação, diz a pediatra Catarina Maria Fagundes, de 37 anos.


Mãe de Antonio, de 9, e de Gabriel, de 6, ela sabe que o assunto provoca polêmicas. De um lado estão os que entendem que não há como lutar contra o avanço da tecnologia, verdadeiro motor da história. De outro estão os que defendem uma vida mais desconectada das redes e com mais interações com pessoas de carne e osso.


O fato é que a criança desse mundo cheio de irresistíveis tentações a cada clique é radicalmente diferente da de poucas décadas atrás. Nossos pais e avós manipulavam e até criavam brinquedos palpáveis para permear a conexão com o mundo da fantasia – essa, sim, intangível. Todos os sentidos eram utilizados de forma ativa na ação de brincar. Atravessar a ponte entre o mundo real e chegar ao lugar do sonho e da imaginação exigia protagonismo dos pequenos. Hoje, o papel é de passividade em mundos criados pelos algoritmos.


“As crianças de hoje são completamente diversas, sim. Estão mais ansiosas e sem limites. Perdidas mesmo. Isso tem a ver com os adultos, que também não são os mesmos e também são afetados pelos pontos negativos gerados pelo uso indiscriminado das mídias”, avalia a médica.


Ela cita o termo chupeta digital para ilustrar a dependência diante de celulares, tablets e computadores, em especial nos últimos meses de crise sanitária e isolamento social.


“A criança quer o que ela vê. Se ela vê o pai almoçando e mexendo no celular, ela também vai querer. Os pais, exaustos, cedem. Eu costumo dizer que proibir totalmente o acesso é enxugar gelo. Não podemos voltar no tempo e negar o patamar tecnológico alcançado hoje em dia. Mas podemos usar as ferramentas contemporâneas com bom senso”.


No caso das crianças, isso quer dizer tempo e conteúdo adequados à cada faixa etária. A tarefa está longe de ser fácil. Mas dizer não aos filhos é essencial, tanto quanto oferecer oportunidades de entretenimento que não sejam somente mediadas pelos apetrechos tecnológicos.


“Aqui em casa não demonizamos as telas. Nosso filho é autista e muitas vezes usamos esse recurso como suporte para crises e para ajudar na comunicação”, pondera a designer gráfica Flávia Oliveira, de 32 anos, mãe de Zeca, de 4.


Ela lembra dos infinitos aplicativos que complementam as brincadeiras tradicionais e que ainda acrescentam elementos que estimulam o desenvolvimento infantil. “Mas estamos falando aqui de um equilíbrio, de fazer um bom aproveitamento da tecnologia. Afinal, lutar contra ela não é válido tendo um nativo digital em casa”.


O pequeno só pode usar tablet ou celular aos finais de semana. Com a pandemia, o tempo diário permitido foi flexibilizado, já que a família fez e continua fazendo um isolamento muito rígido.


“Como Zeca não foi para a escola e nem para as terapias durante um ano e meio, a presença de gadgets (dispositivos eletrônicos portáteis) na rotina foi ampliada. Gostaríamos que não tivesse precisado, mas não era a realidade diante de home office, aulas on-line etc.”, diz Flávia.


Os pais de Zeca valorizam o resgate de brincadeiras antigas e com outros membros da família para que ele vivencie os aspectos lúdicos das gerações que vieram antes. “Na nossa vivência e por ele necessitar de terapia ocupacional, temos contato com inúmeros tipos de brincadeiras e estímulos que envolvem a nossa participação. Então, priorizamos as brincadeiras tradicionais e deixamos as tecnologias como apoio, algo secundário”, afirma.


Esconde-esconde, pega-pega e outras atividades estão sempre na programação. “Priorizamos também a massinha, o lápis de cor, o papel, o contato com a natureza e entendemos até mesmo a importância do tédio. Mas, repito, não achamos que as tecnologias sejam coisas ruins, apenas precisam de controle e vigilância. Afinal, nós mesmos, enquanto adultos, já não fazemos quase nada sem o uso de internet, celular, notebook etc.”


Os conselhos de Catarina e o bom senso de Flávia não são seguidos na maioria das famílias. “É difícil lidar com um sistema de recompensas tão sedutor como o que é oferecido pelas telas”, diz o neuropediatra Rodrigo Carneiro. Ele acrescenta que adolescentes e principalmente as crianças não conseguem acionar mecanismos para inibir o prazer imediato que os jogos e as redes proporcionam. Por isso, o que mais se vê nas residências são crianças e adolescentes fechados por horas no quarto, longe dos demais membros da família e alheios à vida aqui fora.


“Não há maturidade para resistir a esses estímulos. Sozinhos, eles não conseguem ainda escolher conteúdos que favoreçam o desenvolvimento, nem regrar as horas de interação digital. Os pais têm de impor limites”, diz Catarina.


Nível de inteligência


Um estudo sobre o QI, conduzido recentemente pelo neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, alerta sobre os efeitos da superexposição às telas. O levantamento foi publicado em um livro com título forte: A Fábrica de Cretinos Digitais.


Na obra, o neurocientista detalha como, pela primeira vez na história da humanidade, o QI de crianças e adolescentes passou a ser menor do que o da geração anterior. Segundo ele, a tendência é de que os pequenos de hoje sejam menos inteligentes do que os pais quando se tornarem adultos, justamente porque o uso maciço de equipamentos digitais estaria afetando o desenvolvimento do cérebro. Na música Televisão, o Titãs já fazia uma crítica às telas: “A televisão me deixou burro, muito burro demais”, começa a letra, criada em 1985.


Estaríamos mesmo caminhando para uma estabilidade ou um atraso na evolução do QI das futuras gerações? Tudo isso é culpa do avanço cada vez mais veloz das tecnologias? Por outro lado, se há avanço das tecnologias, não seria ele um sinal de que a criatividade, a inventividade e a inteligência humanas estão em constante evolução?


Embora a Ciência ainda precise de muitas pesquisas para cravar conclusões, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) tem orientações muito claras sobre o assunto. A recomendação é de que até os 2 anos de idade o tempo de tela seja zero. Dos 2 aos 5 anos de idade, a tolerância é de uma hora por dia. Dos 6 aos 10, a indicação é de uma a duas horas; e dos 11 aos 18, de duas a três horas por dia. E não importa a idade: esse acesso só deve ser permitido com supervisão de um adulto.


Tratando-se dos adolescentes, vale dizer que eles são boa parte dos pacientes de uma ala que se dedica ao tratamento da dependência digital, no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Depois de estudar durante um ano temas relacionados a essa dependência, um grupo de psicólogos da Universidade de São Paulo (USP) criou, em 2008, um programa psicoterapêutico, realizado no período de 18 semanas. De acordo com o estudo, a dependência que atinge um compulsivo em internet ou um ciberviciado traz efeito equivalente a substâncias viciantes como a cocaína.


Na substituição desse prazer estão atividades como o diálogo familiar, a escuta amorosa, os encontros com a turma e o esporte. Quando o adolescente joga on-line, ele libera dopamina e se sente satisfeito. Esse forte sistema de recompensa é difícil de enfrentar na fase de maturação e desenvolvimento, explica a psicóloga Daniela de Oliveira, especialista em regulação emocional. Ela complementa que os resultados nocivos do bombardeamento digital e de outros impactos da vida moderna são tão expressivos que surgiu recentemente a chamada Medicina do Estilo de Vida, uma tentativa de amenizar os efeitos colaterais de nossos tempos. “Várias das nossas doenças – mentais inclusive – são relacionadas ao modo como vivemos. Desconectar, incluir atividades físicas na rotina, manter uma alimentação regrada, adotar a higiene do sono, fazer um gerenciamento de estresse e garantir relacionamentos saudáveis são hábitos essenciais e devem começar desde cedo, já na infância, principalmente porque é essa a fase em que metabolicamente há mais energia para gastar”.


Daniela pondera que as adaptações da sociedade diante das revoluções tecnológicas ao longo da história sempre trouxeram dilemas éticos e consequências imprevisíveis nas formas de vida. Há um estranhamento e depois uma transição, que nem sempre são fáceis. Foi assim com o advento do rádio, depois do telefone, da TV, computador, internet, celular, redes sociais e outras formas de se comunicar.


“A adaptação é cultural, social e biológica. O que chama a atenção na atualidade é que a nossa capacidade de nos adaptarmos talvez seja mais lenta do que a nossa capacidade e velocidade de criar novas tecnologias. Então, há um conflito, um adiantamento, um apressamento nessa adaptação”, reflete Daniela.


Segundo a psicóloga, ainda não se sabe, de fato, como isso afetará as novas gerações. Mas há um consenso entre cientistas e profissionais da Medicina e da Educação de que o tempo excessivo de tela prejudica a saúde física e mental. Isso é ainda mais nocivo entre os pequenos, que têm aparatos neurológicos e biológicos em desenvolvimento e por isso não dão conta de tantos estímulos.


“Todos os estudos que temos sobre tecnologia mostram que o grau de prejuízo depende do conteúdo, do tempo de tela e da idade do indivíduo. As crianças submetidas a muitas horas de tela tendem a ficar mais violentas, raivosas, agressivas e mais desengajadas do mundo. Elas também apresentam mais problemas na escola”. Entre os adolescentes há ainda o risco de desenvolvimento de transtornos de distorção de imagem, também chamados de transtornos dismórficos corporais (TDC) ou dismorfia corporal. São exemplos doenças como anorexia, bulimia ou vigorexia. “Em geral, quem possui TDC tem o foco muito mais no externo do que no interno. As pessoas se preocupam demais com o que os outros pensam e os níveis de frustração, insatisfação e percepção de felicidade se alteram bastante”.


Já as crianças que gastam muito tempo em jogos on-line perdem noção de espacialidade, pois usam menos sentidos como o tato e o olfato e exercitam menos a coordenação motora. Ao mesmo tempo, ficam o tempo todo em alerta. E se não relaxam, o cérebro entende que estão em perigo. Isso afeta o sono, traz irritabilidade e ansiedade.


“Quando a criança fica muito na virtualidade, perde-se até mesmo a noção de onde as coisas começam e terminam. Nunca devemos esquecer que nós não somos um avatar. Enquanto humanidade, estamos no mesmo barco e precisamos pensar que sociedade queremos formar no futuro. Para isso, necessitamos de adultos felizes, que saibam se regular emocionalmente, que estejam satisfeitos com suas próprias vidas. Nós somos o que fazemos e as crianças aprendem com as nossas ações”, finaliza.


Se neste Dia das Crianças você pretende dar um celular ou outro dispositivo eletrônico de presente, confira abaixo dicas da pediatra Catarina Fagundes:


- Estabeleça um plano de uso de mídia e siga à risca o combinado com os filhos. Esse planejamento pode ser mais ou menos flexível, de acordo com a faixa etária;


- Determine os dias e a quantidade de tempo que os pequenos podem jogar ou ver conteúdos on-line;


- Explique os motivos desses limites e combinados. Seja firme, mas demonstre também empatiaquando o pequeno se frustra por ter que parar de usar o celular;


- Trate as mídias como qualquer outra coisa ou ambiente na vida. Você deixaria seu filho pequeno ir à casa do amigo sem falar com a mãe dele? Deixaria ele tomar um ônibus com menos de 12 anos?;


- Dê oportunidades de tempo off-line. Proponha alternativas de brincadeiras. Conte com sua rede de apoio nessa empreitada. Avós, tios e babás são importantes;


- Quando o seu filho estiver usufruindo do tempo de tela permitido, tente ficar com ele e interagir quanto ao conteúdo que estão consumindo. Conversem sobre a história ou sobre o jogo;


- Dê o exemplo. Use os aparelhos com moderação e nunca em momentos de lazer em família ou durante as refeições;


- Crie ambientes livres de tecnologia na casa. Se possível, concentre TV, videogame, computador e tablets em um só cômodo do seu lar;


- Nunca use o celular ou outro dispositivo digital como “chupeta”. Se o seu filho está chatinho ou chorando muito, ofereça o seu colo e carinho. Não ceda aos pedidos por mais tela fora dos horários combinados;


- Certifique-se se o conteúdo ou aplicativo que o seu filho está consumindo é adequado. Lembre-se que não é por que um app se diz educativo que ele, de fato, é;


- Se quer presentear o seu filho com um celular, espere que complete 12 anos. O seu uso deve ser supervisionado.


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