'Quando sai, o egresso tem menos oportunidades ainda', conta presidente da Fundação Casa

Entrevista com secretário da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo e presidente da Fundação Casa, Fernando Costa

Por: Redação  -  03/10/21  -  16:08
Atualizado em 07/10/21 - 18:46
 “Uma coisa é: errou, o Estado vai punir. Outra coisa é: que tipo de punição eu vou aplicar?”
“Uma coisa é: errou, o Estado vai punir. Outra coisa é: que tipo de punição eu vou aplicar?”   Foto: Vanessa Rodrigues

Uma das mudanças em relação a 2017 foi o fechamento da unidade Santos, no Monte Cabrão. Por que essa e a unidade de Itanhaém foram fechadas?

Fechamos no total 23 centros. Há uma determinação do governador para reestruturar todas as entidades, de todas as secretarias, de todas as fundações, no sentido de analisar a situação econômica daquela entidade e gastar dinheiro público sem desperdício. Quando a gente foi analisar a Fundação Casa, o primeiro ponto é que em 2014 tivemos um pico de aproximadamente 10.500 jovens para 11 mil servidores e mais 500 com quem tínhamos convênio de gestão compartilhadas. Hoje, temos 5.100 jovens.


Diminuiu por causa da pandemia?

Não. Esse número vem caindo ano por ano. Então, desde 2015, 2016, 2017 e há uns dois, três anos ele está estável nesse número de 5.000 jovens. A partir do momento que você não tem mais 10.000 jovens, diminuiu a demanda, evidentemente não precisa mais ter tantos centros, nem tantos servidores. Este era o ano, inclusive, que encerrava o contrato de cinco anos com as gestões compartilhadas. Encerramos sem prorrogação.


Mas só essa medida não fez reduzir o total de servidores.

Não. A segunda medida foi também o PDI, o Programa de Demissão Incentivada, e tivemos a adesão de 500 servidores. Então nós já saímos de 11.500 para 10.500. E estamos estudando um outro projeto de PDI para diminuir um pouco mais. A nossa intenção é ter 9.500.


O senhor diria, então, que tem vagas na Fundação para mais internos.

Temos 7.600 vagas disponíveis. Isso quer dizer que, hoje, a ocupação na Fundação Casa, mesmo com o fechamento de 23 centros, é de 67%. Eu venho dizendo que a gente não quer que os centros tenham 100% de ocupação. A gente quer dar a esse jovem uma melhor qualidade da medida socioeducativa.


A que o senhor atribui a queda de 10.500 internos em 2014 para 5.100 hoje?

Esse é um ponto que me chamou a atenção e eu fui pesquisar o motivo. É uma somatória. Tivemos uma redução da própria criminalidade no Estado de São Paulo e da criminalidade infanto-juvenil. Nós tivemos também uma aplicação maior de medidas alternativas à internação provisória. Hoje, o Poder Judiciário determina com maior quantidade prestação de serviços à sociedade e a liberdade assistida. São medidas que têm a participação dos municípios. A liberdade assistida acompanha as atividades daquele jovem, os cursos, ele é obrigado a fazer relatórios de atividades, estudos, capacitações. Então, numa ponta, o que a gente vem fazendo é boa gestão. Hoje, a gente tem uma transformação na Fundação Casa. Conseguimos R$ 100 milhões de investimento.


Parte desse dinheiro também vai ser usado em reforma das unidades?

Sim, o governador vem investindo muito na educação. Se você for nas escolas públicas, todas estão sendo reformadas, além do investimento do período integral. Eram 350, passaram pra 1.800, até o final do ano serão 2 mil e até o final do ano que vem, 3 mil das 5 mil. Foi quando eu falei com o governador que é importante dar qualidade de vida e ensino ao educando dentro da Fundação Casa. E ele concordou. A partir dali veio esse investimento que serve para toda a reestruturação de todos os 121 centros da Fundação Casa.


O que será feito

Reforma na pintura, hidráulica, nos quartos, refeitório, nas salas de aula, reforma elétrica. Isso já começou, é que a gente não consegue fazer em todos os centros ao mesmo tempo. Estão fazendo por regiões e no dia 12 de outubro, o primeiro centro fica pronto, em Cerqueira César. A previsão é terminar todas as 121 unidades até o final do ano que vem. Além da parte estrutural, a gente está investimento na inclusão digital. Na pandemia, o mundo digital ganhou um relevo muito maior. Então, esse jovem, se puder ser capacitado para trabalhar com o mundo digital, ele aumenta muito a oportunidade de trabalho. Compramos 3.200 tablets. Com isso, vamos trabalhar em parceria com a secretaria de educação, do ensino fundamental, do ensino médio, dos cursos de capacitação, integração com o mundo digital, com internet, com jogos, com torneios que eles participam. As bibliotecas dos centros eram muito deficitárias e hoje, com os tablets, há uma riqueza de leitura. Nós compramos 600 televisões smart de 55 polegadas. Os professores vão utilizar da internet nessas televisões em todas as salas de aula.


Falando em Educação, quando os adolescentes saem da Fundação Casa caem num certo vazio. Se já tinham alguma dificuldade de estudo, de trabalho, fica ainda mais complicado. O que é possível fazer?

Há estudos que apontam que os motivos que levam o jovem a praticar um ato infracional e praticar novamente quando sai são falta de capacitação, oportunidade, empregabilidade, orientação psicossocial e orientação familiar. A Fundação Casa, até ontem, olhava e focava nas medidas socioeducativas por excelência. No momento em que o jovem saía, ele seguia a sua vida e o pós-medida teoricamente é responsabilidade municipal. Eu tive uma conversa com o governador sobre isso. Mesmo não sendo obrigação da Fundação Casa, é obrigação do Estado de São Paulo dar educação, saúde, dignidade de vida à população. Esse é um jovem que, quando sai, se já não tinha muitas oportunidades antes de entrar, quando ele sai e é um egresso essas oportunidades são menores ainda. Precisamos olhar para esse jovem, primeiro por respeito ao ser humano e, segundo, porque esse investimento me faz diminuir a quantidade de jovens que vão praticar um novo ato infracional e voltar para o Estado, quer na Fundação Casa ou no sistema prisional, e gerar mais custo.


E qual é o plano?

Elaboramos um edital de chamamento público para a contratação de uma empresa pelo período de um ano, depois sendo prorrogado, pelo valor de R$ 30 milhões, e tivemos seis empresas, as OSCs (Organizações da Sociedade Civil), que apresentaram propostas.


Qual será a obrigação dessa empresa?

Eles vão capacitar os jovens na Fundação Casa para empregos, capacitar servidores e os servidores das empresas que vão contratar esses jovens. Contatar as empresas que vão contratar, acompanhar as entrevistas de emprego. Existe uma obrigação contratual, se não o valor vai diminuindo. Hoje, temos uma média de 14.600 jovens que saem por ano da Fundação Casa. Todos eles terão essa oportunidade de uma nova vida, serão capacitados e farão no mínimo três entrevistas de emprego no setor privado.


Então essa empresa que vencer vai ter a obrigação de encaminhar esse jovem?

Primeiro é capacitar. Segundo passo, empregar. Então ela faz parcerias com empresas, oferece esses jovens para aquele emprego, acompanha as entrevistas e, mais um passo, tem uma obrigação contratual de conseguir empregar metade dos jovens. Então ela tem que trabalhar para conseguir empregar 7.300 jovens. E, dos jovens empregados, ela tem uma outra obrigação, de metade continuar no emprego pelos primeiros meses.


Por que seis meses?

Porque nós sabemos que, dos jovens que reincidem, metade reincide nos primeiros seis meses. Os seis primeiros meses são cruciais para esse jovem, pra ver o caminho que ele vai seguir. É um trabalho muito importante que a gente está fazendo e se não tiver nenhuma medida judicial que suspensa a tramitação, vamos implementar esse programa em outubro ou novembro. E eu estou falando não só dos jovens que recebem a internação, mas a própria internação provisória, dos 45 dias.


E quem vai medir se essas regras do edital estão sendo cumpridas?

Existe uma comissão especial que nós criamos de pós medida na Fundação Casa. A gente sabe que a capacitação, a orientação, o emprego são fundamentais. No momento que ele recebe o emprego e continua com essa orientação, ele tem uma chance de falar: “eu não quero mais isso, quero seguir um caminho” e a gente precisa dar isso.


 Cada interno da Fundação Casa custa R$ 20 mil por mês aos cofres públicos
Cada interno da Fundação Casa custa R$ 20 mil por mês aos cofres públicos   Foto: Vanessa Rodrigues

Em uma de suas entrevistas, o senhor fala que o índice de reincidência é de 25%. Nesse trabalho do IPAT, vimos que o índice é de 55,8% na Baixada Santista. Será que a Baixada tem alguma característica que chama a atenção?

O litoral tem uma característica diferente com relação ao jovem da Fundação Casa e vou dizer até relacionado ao tipo de ato infracional que eles praticam. Na Fundação Casa, a média é 50% tráfico e 35%, roubo. O Litoral foge à regra, inverte. Tem uma quantidade de mais de 50% de roubo e uma quantidade menor de tráfico e também uma quantidade elevada, de aproximadamente 9%, de furto, enquanto que a média geral é de 2%. Então aí você já mostra uma diferença, talvez por uma questão até cultural, das facções criminosas locais que praticam mais roubo e furto do que tráfico. E aí, quando a gente fala de reincidência, esse cálculo não é bem assim de perguntar para todos eles e verificar. Existe uma matemática que analisa todos os jovens de todos os centros, um determinado período para chegar nessa conta de 25%.


O senhor considera alto?

É alto, independente do sistema prisional ser muito maior que isso, qualquer número é desconfortável. Se tiver 10%, eu como presidente da Fundação Casa, tenho que trabalhar para ser 5%, pra ser 0. A gente tem que tentar cada vez mais diminuir a quantidade de jovens, dar oportunidade de vida e é um momento muito importante pra vida desse jovem, um momento que o Estado tem mesmo que olhar pra esse jovem, porque aquele jovem que sai dali e entra na criminalidade, dificilmente ele sai, ele vai acabar preso, ele vai acabar morto.


Eu gostaria de saber sua opinião sobre a redução ou não da maioridade penal.

Minha posição eu já tinha antes de ser presidente e continuo tendo. E explico que essa posição não é contrária a minha função como presidente da Fundação Casa. Sou favorável à redução da maioridade penal. A maioridade penal está relacionada ao amadurecimento do jovem, ao discernimento dele entender que aquela conduta é certa ou errada. Quando você sustentava, em 1940, que um jovem de 16, 17 anos, não sabia que roubar era errado, eu entendo que tudo bem. Mas você querer sustentar, cientificamente, que um jovem de 17 anos, em 2021, não sabe que roubar é errado e consequentemente você não pode aplicar a ele uma punição, não é sustentável, não é razoável. Existem, sim, jovens que de fato não têm esse discernimento, como existem adultos. Para esses a legislação protege, esses são os inimputáveis. O que a gente não pode é simplesmente não aplicar a legislação como ela existe e como ela deve ser aplicada. A gente tem que dar uma resposta importante pra sociedade no seguinte sentido: ele errou, ele tem que ser punido. Esse é um ponto. E aí as pessoas, quando criticam a redução, falam: “mas a prisão é a universidade do crime”. Correto. As prisões estão cheias. Correto. Mas você não pode deixar de criminalizar alguém sob as justificativas da pena. Uma coisa é: errou, o Estado vai punir. Outra coisa é: que tipo de punição eu vou aplicar?


Explique melhor, por favor

Fumar maconha é crime, mas por medidas de política criminal, entendeu-se que não é um ilícito tão grave, que a pessoa não deve ter uma pena privativa de liberdade. Então quais são as penas? Advertência e prestação de serviço à sociedade são penas alternativas. O Estado responde à sociedade: você está fazendo isso, é proibido e estou te punindo. Quando eu falo que o menor tem que ser responsável, eu não estou dizendo que ele não pode receber uma medida socioeducativa. Você pode responsabilizar, punir e dizer: eu puno, com medidas socioeducativas alternativas. Eu posso até amanhã discutir e não ter internação, mas eu puno. Você vai discutir o tipo de punição que você quer aplicar, mas você responsabiliza. Porque o que a sociedade diz é: “ele é intocável”. Não, ele tem que ser tocável , tem que responder pelo que ele fez, mas entender que se você não melhorar aquele jovem, ele volta pior.


O senhor acha que um jovem de 16 anos pode, então, ir para o sistema prisional?

Veja. Se você colocar um jovem de 16 anos hoje num sistema prisional superlotado, ele entra graduado em mula do tráfico e sai pós-graduado em homicídio, latrocínio, estupro. Então, não adianta achar que a gente vai colocar todo mundo atrás das grades e isso resolve o problema de segurança nacional. Não resolve isso de uma certa forma piora.


Mas quando falamos em redução da maioridade penal, estamos dizendo que sim, esse jovem pode ser preso. Ou não é isso?

Não necessariamente.


Como assim?

Eu estou dizendo que ele pode ser punido.


Mas ele já é punido hoje, ele vai para a Fundação Casa.

A Fundação não é punição, é medida socioeducativa, é tratamento.


Mas então, na sua concepção, um jovem que matou alguém com 16 anos, como é que ele vai ser punido?

Esse é um tema que a gente tem que discutir em sociedade. Eu não entro nesse tema. Primeiro eu entendo, ele tem que ser punido. Ponto. Agora vamos discutir que tipo de punição. Vamos aplicar medida socioeducativa, pena, medida socioeducativa na Fundação Casa, medida socioeducativa pra esse jovem num sistema prisional diferente, do jovem de 16 a 21 anos, vamos separar ele e dar, além de pena, atividades multidisciplinares.


Então não seria nem o que é hoje, na Fundação Casa, e nem o CDP, o presídio. Seria algo diferente, focado nessa faixa etária?

Provavelmente sim, mas pra isso a gente tem que discutir. Ministério Público, Poder Judiciário, sociedade civil, Estado, município, Saúde, a sociedade tem que sentar e discutir. O que não dá pra discutir é sustentar que o menor de 18 é inimputável porque não sabe o que é certo ou errado. Ele sabe. Agora, qual o melhor tipo de punição pra esse jovem? Isso tem que discutir. Eu me simpatizo, principalmente por estar muito presente na Fundação Casa e acompanhando os resultados, com alguns estabelecimentos prisionais separados numa determinada faixa etária. Talvez uma mistura de pena com medida socioeducativa, dos 16 aos 21. Acho que teria que separar essa faixa etária que tá iniciando a vida, que não tem ainda um amadurecimento completo e não aplicar pena, prisão. Tem que aplicar curso de capacitação, acompanhamento psicossocial.


Mas isso já não é um pouco o que a Fundação Casa faz? Um menino de 17 anos que mata alguém, fica privado de liberdade, igual ao CDP, mas tem curso de capacitação, alimentação, condições dignas, mas ele está preso. Qual seria a terceira via? O que é a pena se não a privação da liberdade?

Um grande fator é a própria terminologia. A terminologia já resolve grande parte desse fator. Como se diz que ele é inimputável, que ele não é responsabilizado pelo Estado, cria-se um estigma de que ele pode praticar crime que não será punido. É que a gente, por terminologia, diz que é medida socioeducativa e que não é punição. Mas se você passar a interpretar que isso passa a ser uma punição e que o Estado está punindo e gastando dinheiro com isso, você já resolve grande parte da indignação, de que essas pessoas não respondem e também de que essa faixa etária de pessoas, de 16/ 17 anos, as grandes facções criminosas pedem ou exigem que essas pessoas pratiquem os crimes de tráfico ou roubo ou pedem para essas pessoas assumirem esses crimes, pessoas que não praticaram, principalmente por essa questão da inimputabilidade.


Está no radar da Fundação criar algum tipo de estímulo, incentivo para a empresa, algum tipo de isenção para a contratação dos egressos?

Eu sei que as empresas têm aquela cota social, que é do aprendiz. Eu tenho quase certeza que o jovem egresso da Fundação Casa entra. Quem vai cuidar disso é a OSC, que vai analisar as empresas e estimular as empresas pra poder contratar esses jovens. Acredito que eles têm aquele dever de ter uma parte, de 5%, que tem que ser de uma determinada faixa etária, que são jovens aprendizes de 16/17 anos e acho que entram também os egressos da Fundação Casa.


A gente nota, no perfil deles, que há uma grande desestrutura da família. 65% têm histórico de algum parente que está ou ficou preso, ou algum irmão, primo que ficou na Fundação Casa. Como o Estado pode ajudar nessa questão?

Naquele que já ingressou na Fundação Casa, sem dúvida nenhuma é esse programa do pós-medida. A gente sabe que falta essa orientação familiar e a gente vai conseguir dar uma orientação psicossocial a essas pessoas. Então, capacitação, acompanhamento psicossocial, emprego e acompanhamento do emprego. Agora nos casos daqueles que ainda não praticaram e que têm essa desestrutura familiar, investimento na educação, que é essa transformação do governador João Dória. Nas oito horas ele tem aula, esporte, cultura, arte, as várias alimentações que não tem na casa dele. Quer dizer, você tira ele um pouco do mau caminho, você vai dar uma estrutura educacional que ele não tem em casa. Eu não tenho a menor dúvida de que esse investimento é um dos investimentos mais importantes que o governador João Dória vem fazendo, a educação. A gente está falando de aproximadamente 350 (escolas) pra 3 mil, de quase mil por cento de aumento, é muito significativo.


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