Jardim Ângela, na zona sul da Capital, vira o jogo contra a criminalidade na base do acolhimento

Comunidade, que tem quase 300 mil habitantes, é exemplo de mudança de paradigma

Por: Redação  -  31/10/21  -  09:36
 Com resiliência, fé e muito trabalho, o jogo virou no bairro da Capital Paulista
Com resiliência, fé e muito trabalho, o jogo virou no bairro da Capital Paulista   Foto: Divulgação/Santos Mártires

Imagine o seguinte quadro: taxa de homicídios de 108 mortes por 100 mil habitantes. Nas manchetes de jornais, a alcunha de “campeão de crime em São Paulo”. Esse era o Jardim Ângela, na Zona Sul da Capital. Em 2000, o índice era ainda maior, de 115 por 100 mil habitantes. Num recorte apenas entre os homens com idade entre 15 e 25 anos, era ainda pior: 206 para cada 100 mil habitantes. Um assombro, ainda mais se comparado com os 4 por 100 mil de Moema, bairro nobre da Capital.


Porém, com resiliência, fé e muito trabalho, o jogo virou. E hoje, a comunidade, que tem quase 300 mil habitantes, é exemplo de mudança de paradigma. Ainda convive com casos como o hipermercado que, há poucas semanas, vendia bandeja vazia de carne e só entregava o produto completo após o pagamento no caixa. Mas há pontos a serem comemorados.


“É um mérito muito da comunidade. Foi uma das regiões mais violentas do mundo, no final da década de 1990. Então, houve uma reforma, uma reorganização melhor, no caso da PM. Mas, no Ângela, a comunidade se organizou”, explica Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.


Um desses entes de mudança é o Fórum em Defesa da Vida que, há 26 anos, possibilita o encontro entre população local e pessoas ligadas aos governos locais, secretarias, promotores públicos, entre outros, na busca incansável pela paz. “Mensalmente, são feitos diagnósticos e discussões sobre as causas e consequências da violência na vida das pessoas, e busca-se entender como a violência é produzida no cotidiano. Além disso, considera-se que o Fórum é um espaço privilegiado para lutarmos por políticas públicas, por dignidade humana e por melhorias para as condições de vida dos moradores e das famílias do Jardim Ângela e proximidades”, resume Regina Paixão, membro do Fórum e presidente da Sociedade da Paróquia Santos Mártires.


A igreja, por sinal, tem papel importante nessa transformação. Padre Jaime, que respondia pelo local, acusou o golpe da violência, ao perceber uma população mais trancada em casa e atrás de grades. Foi quando surgiu a ideia da Caminhada em Defesa da Vida e pela Paz, que acontece todo dia de Finados. “Na época, havia muitos jovens mortos e a caminhada era para homenagear todas aquelas vidas perdidas para a violência, dizendo que nenhuma vítima deixaria de ser lembrada. É uma forma de reforçar que, aqui, a comunidade cuida das pessoas. Foi um processo que veio de dentro para fora”, reforça Carolina.


Nesta terça, não haverá a caminhada, para evitar aglomerações. Em seu lugar, será realizado um ato inter-religioso com o objetivo de refletir as ações deste ano que traz o tema “26ª Caminhada pela Vida e Pela Paz: nem Fome, nem Tiro, nem Abandono: Saúde e Democracia, Já”.


Pressão popular e conquistas

Regina lembra que esteve em rodas de conversa e audiências públicas; participou ativamente de muitas caminhadas e manifestações e ajudou na elaboração e realização de dois Tribunais Populares que deram subsídios para três Ações Civis Públicas, nas quais o Estado foi responsabilizado e sentenciado pela sua omissão em setores fundamentais (Segurança Pública, Justiça, Educação e Saúde) para manutenção de uma vida digna para a população dessa região. Tudo por meio do chamado Tribunal Popular.


Nele, que funcionava como uma espécie de júri, um grande debate sobre a situação da violência policial, da falta de acesso à saúde, etc. e as autoridades que “se explicavam”, dali saindo pedidos. O resultado da pressão veio em forma de conquistas importantes, como a implementação dos projetos de bases de policiamento comunitário na região; instalação de dois CICs (Centro de Integração e Cidadania); construção do Hospital M’ Boi Mirim; ampliação e construção dos equipamentos públicos nas áreas da educação e cultura, como o CEU (Centro Educacional Unificado) Feitiço da Vila e assistência social.


Carolina e Regina se reconhecem na história da mudança do Jardim Ângela. Cada uma com seu papel, mas entendendo que ambas são fundamentais. “O Sou da Paz sempre esteve próximo do território nos debates, rodas de conversa e ações pelo fim da violência. Sua participação se intensificou com os Postes da Paz e também na Campanha do Desarmamento”, diz a presidente da Sociedade da Paróquia Santos Mártires.


A diretora-executiva do Sou da Paz, por sua vez, enaltece o empenho da comunidade na formação desse novo Jardim Ângela. “Foi uma das regiões que, lá na campanha do desarmamento, fez muitas entregas de armas. É aquela história: São Paulo tem, de uma forma geral, um conjunto de ações que contribui para reduzir a violência. Você tem a receita do bolo, mas não sabe o quanto de cada ingrediente foi usado ali. Ali, observa-se a mobilização, o fortalecimento do espírito comunitário, melhoria das atividades de policiamento, o Poder Público implantando serviços no território. Foi um caso de sucesso, e que não é impossível (de ser replicado)”, complementa.


Por aqui, forças policiais buscam integração com a comunidade

Já na nossa Região, as Polícias Civil e Militar também buscam maior aproximação com a comunidade. Ações sociais, de acolhimento e integrativas compõem o rol de iniciativas que buscam quebrar a barreira entre a sociedade e os agentes de segurança.


“Temos vários trabalhos sociais. Sobre violência contra a mulher, temos um trabalho positivo que queremos destacar, “Homem, sim; consciente também”, onde a gente pega o agressor, traz para palestras, para uma conversa, passa por uma série de profissionais, para ele entender o caráter daquela agressão dele. Isso diminuiu muito a reincidência. Temos trabalhos de policiais civis de delegacias junto às comunidades, principalmente quanto à distribuição de cestas básicas. Eles participam de acontecimentos da comunidade”, relata Manoel Gatto Neto, diretor do Deinter-6.


Ele cita, ainda, a Casa Rosa de São Vicente, que é o acolhimento da família vítima de violência doméstica. “A mulher recebe todo o acolhimento e, depois, o empoderamento para ela poder voltar para a sociedade, recuperada desse trauma”.


Aproximação comunitária

Já o coronel Cássio Freitas, comandante da Polícia Militar na Região da Baixada Santista e Vale do Ribeira, destaca interações como o Disque 190 e o Disque Denúncia, vitais para a comunicação de crimes e pistas sobre os casos, mas que são efêmeros. No campo social, ele fala com entusiasmo sobre um programa, ainda em estágio inicial, de aproximação comunitária nos locais mais vulneráveis.


“É aproximação com a proposição de uma ação social naquele local, utilizando a infraestrutura da Polícia Militar. Recentemente, fizemos distribuição de cestas básicas do Governo do Estado nesses locais de vulnerabilidade. Levamos nossos médicos, dentistas. Estamos ainda experimentando de que forma isso acontece”, relata.


O programa de Vizinhança Solidária também é outro ponto positivo. “Numa rua, as pessoas entram num aplicativo de conversa e interagem com núcleos de policiais preparados para aquilo. Isso facilita muito o nosso trabalho. São núcleos ativos, que trazem muitas informações de alta qualidade, com pessoas que estão compromissadas”.


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