As seis dezenas

A verdade é como as seis dezenas, de uma loteria cujo prêmio é entender o porquê de estar alerta

Por: Rafael Motta  -  29/03/24  -  06:25
  Foto: Reprodução

Botaram tanques e tropas nas ruas. Golpe clássico. Mas era preciso um pedaço de papel impresso para se considerar legítima a derrubada de um governo eleito pelo voto direto, ainda que não passasse de uma formalidade dispensável e que ninguém ousaria exigir dos golpistas.


“A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Esta se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma.”


É um trecho do primeiro dos 17 atos institucionais editados pela ditadura civil-militar — também civil pelo apoio de fortes segmentos empresariais e políticos ciosos de seus interesses — que se instalou no País há seis dezenas de anos, a serem completados neste domingo de Páscoa.


Por isso, aqueles que riem da descoberta de minutas golpistas que visavam a justificar a fracassada tentativa de deposição do governo eleito em 2022, dizendo que “ninguém faz texto para dar golpe”, ou ignoram a história do Brasil ou são cínicos. Ou os dois.


Os golpistas de 60 anos atrás foram instigados por políticos que não conseguiam a Presidência da República e acusavam “as esquerdas” de querer impor “o comunismo” ao País. Os de agora o foram por aqueles que dizem a mesma coisa, com diferenças fundamentais para os “golpistas raiz”.


Uma delas: o 8 de janeiro do ano passado foi instigado por um ex-presidente da República. A principal liderança golpista havia sumido do País antes da deflagração da baderna. Chamada às falas e tendo retido seu passaporte, foi a uma embaixada testar possibilidades de não ir presa.


Embaixadas são representações invioláveis. Mal comparando, são o território de um país, e suas entradas e saídas equivalem a fronteiras com a nação na qual estão instaladas. Se um governo externo dá asilo a alguém, o põe sob sua proteção. Justiça e polícia ‘do exterior’ não entram.


Nesta terra de José Bonifácio, Rubens Paiva, Mario Covas e muitos outros nela nascidos e por ela adotados, os comportamentos do parágrafo sobre o 8 de janeiro seriam designados como covardia e com outros sinônimos menos agradáveis. E os covardes — felizmente — costumam fracassar.


Quando se recordam os horrores do nazismo, não é para comemorá-los, mas para que não sejam soterrados pela poeira do esquecimento. Restam cada vez menos sobreviventes daquele tempo. No dia em que ninguém mais lembrasse aquela dor, alguém poderia querer imitar Hitler. E ser apoiado.


O 31 de março de 1964 e suas consequências têm de ser resgatados sempre. O que se alegou para dar o golpe também, mas para se afirmar que era uma enganação de interesseiros. Deve ser ensinado nas escolas da forma como se fala na escravidão no Brasil: um crime. Ou alguém aqui ouviu de professores que era preciso compreender as necessidades de braços para as fazendas dos escravagistas?


A verdade é como as seis dezenas. Não de anos do golpe, mas de uma loteria, cujo prêmio é entender o porquê de estar alerta.


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