Um memorial de caixas vazias

Ao que parece, a produção de sentido da obra propõe uma reflexão quanto à nossa construção de vivências

Por: Matheus Tagé  -  27/11/23  -  06:23
São mais de cem placas que contabilizam o volume de caixas, dando a estes objetos uma certa relação de identidade
São mais de cem placas que contabilizam o volume de caixas, dando a estes objetos uma certa relação de identidade   Foto: Matheus Tagé

Às vésperas das eleições na Argentina, e do fatídico jogo contra o Brasil, há alguns dias, me deparei com uma interessante exposição de arte contemporânea, justamente argentina, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Em meio à mostra Un Lento Venir Viniendo, caminho entre objetos, instalações, imagens, frases instigantes em um gigantesco lambe-lambe vermelho, uma cópia de contato fotográfica ampliada em grande escala com registros de passados distantes e uma escultura com centenas de dólares – americanos, ou blue – derretidos no meio do espaço. De canto, quase passa despercebido, mas há uma obra diferente das outras. Provocativa e ironicamente burocrática, a produção parece apenas uma prateleira com centenas de caixas iguais. Mas soa diferente.


Assim, observo que em frente àquela parede de caixas simetricamente organizadas, existe um controle numérico. São mais de cem placas que contabilizam o volume de caixas, dando a estes objetos uma certa relação de identidade. Essa concepção se intensifica quando reparo que há uma lápide funerária no meio do salão, em frente às prateleiras. Como um cemitério de memórias, a descrição escrita serve de apoio para contextualizar o conteúdo de cada caixa da instalação.


Por meio da numeração, observo os elementos identificados. Número um: La foto de una ciudad; número quarenta: Pasta seca; número setenta: Un chicle rosa masticado; número cento e três: El manual de un aire acondicionado; número cento e vinte e sete: El mapa del continente Sudamericano. E entre tantos registros e objetos aleatórios descritos, noto que uma quantidade razoável traz uma mesma descrição curiosa, como na caixa número cento e setenta e quatro: Caja vacia. Parece que, entre dezenas de lembranças encaixotadas, há também uma grande fração de memórias e registros esquecidos.


A instalação é intitulada La Fenomelogía (Ningún Amor se Parece al Océano), de autoria do argentino Martín Legón. De certa forma, o trabalho articula uma refinada problematização teórica e documental. A obra repensa a lógica do arquivo, da memória, do processo de experiências presentificadas em objetos – de modo a criar uma espécie de monumento fúnebre. As caixas-ânforas arquivam fragmentos ilusórios – e irrisórios – da existência material de alguém. Talvez uma provocação quanto à presença de um possível vazio nessa construção. Uma metáfora que flexibiliza camadas de poesia e burocracia, a fim de refletir nosso repertório simbólico com relação às experiências de mundo.


Ao que parece, a produção de sentido da obra propõe uma reflexão quanto à nossa construção de vivências, e ambiências, condicionada a uma lógica de elementos e coisas concretas. Nota-se aqui uma fenomenologia para as significações que estruturam nossa percepção e relação com a memória, e com a própria realidade. Os estímulos textuais na lápide mortuária ilustram a ligação entre a lembrança e camadas de processos narrativos desencadeados por cada um desses objetos. Assim, estamos propensos à nossa voluntariosa necessidade de suspensão de descrença; como a urgência em saber sobre o conteúdo das caixas ou, ainda, se é relevante que o objeto exista ou não. Isto não há como controlar. Me parece que esta é a graça do processo artístico. Sob uma perspectiva ampla, cabe à obra a construção do imaginário do que, talvez, nem precise existir.


Trata-se, então, da consciência e a memória das camadas de realidade que permeiam a experiência dos objetos, em sua essência. O que dialoga com a definição de Jean-François Lyotard quanto à fenomenologia. Para o autor, trata-se do estudo dos fenômenos, aquilo que surge à consciência a partir do que é dado. E o que nos é dado, nesta experiência imersiva, são apenas caixas e palavras. Um processo de luto pela memória fugidia do que não há.


Olho para o relógio e verifico que estou há cerca de 20 minutos sozinho lendo uma lápide com descrições de objetos, tentando decodificar nas caixas da prateleira seus referentes numéricos. É quando um casal entra e ao olhar para outras obras, acaba passando por cima da lápide, o que desperta a fúria de uma profissional de segurança, responsável da sala. A mulher anda apressada e logo dá uma advertência, explicando que a peça faz parte da obra em exposição. O casal se desculpa e informa que não havia notado a presença daquele objeto no chão.


Quando a segurança se afastou, ao passar por mim, já atentos à materialidade da obra, escuto o casal sussurrando: “Para que essa bronca? São só caixas vazias...”. Atentos ou não à legenda presente na lápide, talvez, até tenham certa razão – claro que, caso ignorem o processo de decodificação, podem ser, realmente, caixas vazias. Mas sinto que, de fato, há algo diferente. Por ora, prefiro acreditar na reflexão sobre convergências entre arte, palavra, imagem e memória. Boa semana!


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