Um antológico último encontro

Paul McCartney, George Harrison e a inteligência artificial

Por: Matheus Tagé  -  13/11/23  -  06:43
  Foto: Reprodução

A cena começa com enquadramento fechado, e podemos ver o processo de afinação de dois violões. Trata-se de Paul McCartney e George Harrison, em 1995. Na sequência, uma fita cassete é inserida em um aparelho de som. Então, ouvimos: “one, two, three...”. Entre gravações de épocas diversas, o videoclipe revela uma história de um registro sonoro feito por John Lennon, no final dos anos 70. Uma canção que não teve tempo hábil de ser produzida e gravada em nenhum disco. A atmosfera carrega nuances de Abbey Road e, talvez, possamos interpretá-la como reflexão sobre o problemático distanciamento da banda, e as circunstâncias pessoais e conceituais que culminaram no seu desfecho, em 1970.


Mais de uma década depois da morte de Lennon, Yoko Ono resolveu entregar aos ex-parceiros Paul McCartney, Ringo Starr e George Harrison o registro em fita cassete. No período, durante a produção do The Beatles Anthology, 1995, a proposta seria produzir e gravar a canção inédita. Porém, não havia tecnologia suficiente para editar e recortar com qualidade a faixa sonora poluída pelo som do piano. Apesar de terem trabalhado arranjos, não seria possível utilizar o registro vocal de Lennon. A música foi arquivada.


Passadas mais algumas décadas, e com a ausência de George Harrison, morto em 2001, uma nova tecnologia aparece como fio condutor para a realização desse projeto. A partir de mecanismos de Inteligência Artificial, foi possível estruturar a gravação por pistas, descolando o plano vocal da textura do piano. Assim, desembolaram a canção para o resgate da voz isolada de Lennon de um longínquo passado. Com trechos gravados com o timbre da guitarra de George Harrison, em 1995, e bateria, piano, baixo e backing vocals de Ringo e Paul, em 2022, podemos assistir, enfim, ao mais belo quebra-cabeça sonoro e temporal já visto.


Coube à maior banda de todos os tempos suprimir a relação entre tempo e espaço. Uma ruptura com relação às possibilidades da realidade. Observamos algo que sempre foi marcante na trajetória dos Beatles: a experimentação, um tanto curiosa, de novas tecnologias de gravação. Para isso, temporalidades distintas, reunidas em uma mesma dimensão, vislumbram a importância histórica de concluir esta última poesia sonora.


O que há de mágico nessa formatação é o fato de que muitas gerações – a minha, por exemplo – não tiveram a oportunidade de acompanhar os Beatles em atividade em tempo real. De certa forma, a reunião que rompe com as leis do tempo é um presente para a humanidade. O lançamento se organizou por meio de uma estrutura transmídia. O teaser, o clipe com a canção e o minidocumentário são janelas para uma mesma premissa: o argumento de que os Beatles, de fato, obliteraram o tempo através da música.


As presenças fantasmáticas de George Harrison e John Lennon, no clipe, ilustram isso. Nas imagens, os jovens músicos surgem em cortes filmados nos anos 1960, contracenando com seus companheiros envelhecidos – a metalinguagem justifica de forma imagética a convergência de temporalidades do registro sonoro. As imagens, em paralelo à música, transpassam a barreira e os limites do tempo concreto e constroem uma janela para o impossível, um tempo que pertence apenas ao imaginário desencadeado pelas paisagens sonoras do quarteto de Liverpool – uma presença com tal intensidade, que parece ser dificilmente alcançada por outros artistas.


De fato, Now and Then soa como uma despedida. Para quem conheceu a banda na época, para quem conheceu depois, e mesmo para quem conhece a partir de agora, os Beatles estão em todo o lugar, o tempo todo, pois romperam com a materialidade da existência física e se expandiram para um estado fragmentado de espírito, de ambiências, de música.


Essa ideia, assim como uma dinâmica de ondas sonoras, foi capaz de transpassar barreiras físicas e culturais. Já que nada pode conter sua proliferação – nem mesmo o tempo. É muito curioso observar a interpretação intimista de John Lennon, uma vez que a gravação foi feita sem muitas pretensões, sendo amplificada em nível de superprodução com a participação do grupo todo.


A montagem do clipe evoca o título da canção, e em quatro minutos e trinta e cinco segundos, consegue condensar uma nostálgica dinâmica de passagem do tempo. Isso se aplica não apenas aos integrantes da banda, que contracenam com suas versões de outras épocas, mas também para os fãs, que se deparam com a latência de múltiplos passados. Mais do que um lançamento da última canção de uma banda que terminou há mais de meio século, Now and Then é uma viagem no tempo, um experimentalismo estético e poético, é o derradeiro encontro. Boa semana!


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