A cena começa com enquadramento fechado, e podemos ver o processo de afinação de dois violões. Trata-se de Paul McCartney e George Harrison, em 1995. Na sequência, uma fita cassete é inserida em um aparelho de som. Então, ouvimos: “one, two, three...”. Entre gravações de épocas diversas, o videoclipe revela uma história de um registro sonoro feito por John Lennon, no final dos anos 70. Uma canção que não teve tempo hábil de ser produzida e gravada em nenhum disco. A atmosfera carrega nuances de Abbey Road e, talvez, possamos interpretá-la como reflexão sobre o problemático distanciamento da banda, e as circunstâncias pessoais e conceituais que culminaram no seu desfecho, em 1970.
Mais de uma década depois da morte de Lennon, Yoko Ono resolveu entregar aos ex-parceiros Paul McCartney, Ringo Starr e George Harrison o registro em fita cassete. No período, durante a produção do The Beatles Anthology, 1995, a proposta seria produzir e gravar a canção inédita. Porém, não havia tecnologia suficiente para editar e recortar com qualidade a faixa sonora poluída pelo som do piano. Apesar de terem trabalhado arranjos, não seria possível utilizar o registro vocal de Lennon. A música foi arquivada.
Passadas mais algumas décadas, e com a ausência de George Harrison, morto em 2001, uma nova tecnologia aparece como fio condutor para a realização desse projeto. A partir de mecanismos de Inteligência Artificial, foi possível estruturar a gravação por pistas, descolando o plano vocal da textura do piano. Assim, desembolaram a canção para o resgate da voz isolada de Lennon de um longínquo passado. Com trechos gravados com o timbre da guitarra de George Harrison, em 1995, e bateria, piano, baixo e backing vocals de Ringo e Paul, em 2022, podemos assistir, enfim, ao mais belo quebra-cabeça sonoro e temporal já visto.
Coube à maior banda de todos os tempos suprimir a relação entre tempo e espaço. Uma ruptura com relação às possibilidades da realidade. Observamos algo que sempre foi marcante na trajetória dos Beatles: a experimentação, um tanto curiosa, de novas tecnologias de gravação. Para isso, temporalidades distintas, reunidas em uma mesma dimensão, vislumbram a importância histórica de concluir esta última poesia sonora.
As presenças fantasmáticas de George Harrison e John Lennon, no clipe, ilustram isso. Nas imagens, os jovens músicos surgem em cortes filmados nos anos 1960, contracenando com seus companheiros envelhecidos – a metalinguagem justifica de forma imagética a convergência de temporalidades do registro sonoro. As imagens, em paralelo à música, transpassam a barreira e os limites do tempo concreto e constroem uma janela para o impossível, um tempo que pertence apenas ao imaginário desencadeado pelas paisagens sonoras do quarteto de Liverpool – uma presença com tal intensidade, que parece ser dificilmente alcançada por outros artistas.
Essa ideia, assim como uma dinâmica de ondas sonoras, foi capaz de transpassar barreiras físicas e culturais. Já que nada pode conter sua proliferação – nem mesmo o tempo. É muito curioso observar a interpretação intimista de John Lennon, uma vez que a gravação foi feita sem muitas pretensões, sendo amplificada em nível de superprodução com a participação do grupo todo.