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Matheus Tagé

Retrato de um músico livre

Matheus Tagé, fotojornalista e doutor em Comunicação

Matheus Tagé

2 de setembro de 2024 às 06:20Modificado em 2 de setembro de 2024 às 06:21
O artista correu para baixo de uma marquise com sua mala e a caixa do violão (Imagem ilustrativa/Unsplash)

O artista correu para baixo de uma marquise com sua mala e a caixa do violão (Imagem ilustrativa/Unsplash)

A calçada está movimentada. Pessoas passam com sacolas, vindas do mercado e das lojas. Crianças caminham enquanto tomam sorvete, deixando respingar o creme derretido na roupa e no chão. Uma senhora com uma pesada sacola de compras, sendo praticamente arrastada por um cachorro vira-lata, deixa uma caixa de ovos estourar na calçada. Uma lambança. No movimento incessante de milhares de pés, um em especial chama a atenção.

Uma desbotada bota de couro rompia com o fluxo de movimento do dia; na verdade, parecia marcar um ritmo próprio, em um mesmo ponto. Com o pé direito, um homem tentava conduzir o tempo do relógio; uma cadência rítmica contínua, que organizava a fluidez daquela cena. Olho mais atento. Escuto algo que parece ser uma música. Com calças jeans e uma jaqueta batida, o homem tocava um violão de nylon, ligado a uma pequena caixa de som, que servia de referência para o improviso. No meio no barulho da cidade, ele se arriscava numa rota diferente: ele tocava blues.

Na sequência de doze compassos, o homem mostrava sua expressividade por meio da linguagem instrumental – sem palavras. Noto que o blues tem muito em comum com a dinâmica da rua. Na prática, o que vale ao final do dia é a capacidade de improvisar. E isto o músico fazia bem. Sua caixa de som de pequena voltagem, cheia de adesivos, estava conectada a um pequeno transformador, que por sua vez, se sustentava em um fio ligado na tomada de um boteco próximo. Ele estava sentado sobre uma mala de tamanho médio: uma espécie de palco, que talvez fosse também sua casa. A caixa do violão estava aberta, posicionada ao lado, de forma que as pessoas pudessem jogar notas ou moedas.

O pessoal do comércio parecia gostar do som. Um menino que vendia balas nas redondezas parou e ficou sentado ali perto, a fim de escutar a apresentação instrumental. Longe das paradas de sucesso, da televisão, e das relações algorítmicas com que as redes estabelecem o que é ou não relevante na música, o homem fazia jus exatamente ao que o grande Milton Nascimento dizia: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”.

A maioria das pessoas passava sem perceber o arranjo sonoro, outras poucas, cuja sensibilidade ainda não havia sido suprimida pelos ruídos da modernidade, passavam e prestavam atenção – ao menos, por alguns minutos. Era o suficiente. O artista só precisava desses momentos para tocar a percepção do público. Quem ouviu, ouviu. Quem não prestou atenção, nunca mais terá essa oportunidade.

De nota em nota, o homem desenhava uma bela escala pentatônica e fazia o violão de nylon estalar: quase um choro, ou lamento. Em tom menor, as notas escorregavam fugidias pelas cordas, de forma a dar um tom sombrio e melancólico àquela tarde nublada. Era o blues em sua essência. Triste, suave e fluido.

Uma moça que passava apressada fez uma pausa e tirou o fone de ouvido para prestar atenção. Afinal, nem todos estão surdos. O arranjo parecia infinito. Eu observei o relógio, fazia uns 10 minutos que o homem estava improvisando sobre uma mesma base standard que era projetada pela caixa de som. Sem palheta, as notas eram dedilhadas com pura sensibilidade.

De repente, um estrondo. Parecia ser um prenúncio de trovoada. Uma chuva estava a caminho. O público retornava a sua rotina, conforme os pingos se precipitavam. O artista, completamente imerso em seu improviso, não parou de tocar. O menino das balas, então, resolveu avisar: “Tio, olha a chuva!”. Foi pouco tempo. Uma pancada começava. O artista despertou do transe sonoro e colocou rapidamente o violão na caixa, a fim de proteger o instrumento. Um garçom do boteco ajudou, desligando a caixa de som da tomada, e levando para a parte coberta.

O artista correu para baixo de uma marquise com sua mala e a caixa do violão. O público se dispersou: o show estava encerrado. Enquanto esperava a chuva passar, abriu a mala e começou a contar o dinheiro arrecadado. Acendeu um cigarro e chamou o menino das balas que o ajudara a salvar o equipamento. Fez uma oferta generosa pela caixa de doces do garoto – que nem acreditava que vendera tudo.

A tempestade passava, e o menino saiu correndo contente com um punhado de notas na mão. O músico apagou o cigarro no chão, com a mesma bota que marcara o tempo do blues daquela tarde. “Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão”, como diz a canção, pegou seu instrumento, a mala e a caixa de som, e seguiu em frente, no seu ritmo, para outros palcos da vida. Boa semana!

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