O viajante do tempo

Ninguém dava bola para ele. Entre os clientes que passavam, todos o ignoravam

Por: Matheus Tagé  -  04/09/23  -  07:43
Não se sabia muita coisa sobre o personagem
Não se sabia muita coisa sobre o personagem   Foto: Nirley Sena/Arquivo AT

"Eu vim do futuro, rapaz", dizia um homem misterioso, em frente à banca de jornal, vestido com roupas largas e uma calça batida. Ninguém dava bola para ele. Entre os clientes que passavam para comprar recarga de celular, figurinhas, jornais e revistas, todos o ignoravam. Tratava-se de um sujeito estranho. Todos os dias pela manhã, em frente à banca, ele lia as manchetes nas capas dos jornais expostas e falava para as pessoas que passavam: "Não falei que isto ia acontecer?".


Na verdade, não se sabia muita coisa sobre o personagem. Certa vez, ao pegar o jornal e um pacote de figurinhas, na época da Copa do Mundo de 2022, ele me indagou: "Vou te avisar, não crie esperanças, o Brasil não será campeão”. Meu filho, que estava junto comigo, achou que era apenas um torcedor pessimista. Mas o homem continuou: “Não estou criticando a Seleção, estou somente relatando um fato que acontecerá, inevitavelmente".


O dono da banca provocou: “Espera aí, mas você viu a estreia da seleção?”. Na época, o Brasil acabara de vencer a Sérvia, por 2 a 0. De alguma forma, havia uma expectativa. O homem enigmático respondeu: “O Brasil não passará das quartas de final”. Demos risada, o cara só podia estar maluco. De repente, ele olhou para mim: “E você não vai nem assistir esta eliminação”. Tomei um susto. “O que é isso, companheiro?”, perguntei. O homem respondeu: “Não me leve a mal, mas eu vim do futuro”.


Fiquei com a pulga atrás da orelha, mas contemporizei: "Ninguém sabe o dia de amanhã, não é mesmo?". E o homem dizia: "Mas eu sei, pois vim de lá". O dono da banca contava o meu troco. Como brincadeira, perguntei ao viajante do tempo: “Mas se você veio do futuro, por que não fala os números da loteria?”. Incomodado, ele respondeu: “Não posso, esta não é a minha função aqui. E tem outra coisa, há um limite ético neste tipo de viagem”. Que figura: ele tinha resposta para tudo.


Dias depois, estava a caminho de casa, à noite, quando vi aquele sujeito sozinho em frente à banca de jornal fechada. Apesar da loucura e da história de viagem no tempo, era apenas um senhor de meia idade, provavelmente com problemas pessoais, algum trauma ou algo do tipo. Algumas semanas se passaram e o encontrei novamente. Perguntei como estava. “Era para estar melhor, mas, infelizmente, ainda não consegui completar a minha missão”, respondeu. Para não entrar em pormenores, respondi de forma genérica o que, talvez, todo viajante do tempo deve odiar escutar: “Pois é, um dia de cada vez, né...?”. O homem fixou os olhos em mim e ficou parado, como se eu tivesse falado algum código secreto. De repente, saiu correndo e desapareceu pela rua. Não entendi nada.


Apesar de ser uma previsão meio charlatanesca, fiquei meio preocupado com a informação de que eu não assistiria à eliminação do Brasil. Andava na rua desconfiado, atravessava a faixa de pedestres com o máximo cuidado. Faixa-viva então, nem pensar. Esperava a rua esvaziar para atravessar onde não houvesse semáforo. De repente, chegou o dia do jogo das quartas de final, Brasil e Croácia. Assisti em casa apenas o começo da partida, e logo fui para a redação. No caminho, escutei pelo rádio o gol do Neymar – parecia ter sido um golaço. Quando cheguei no jornal, a Croácia havia empatado. No início das cobranças de pênalti, corremos para fotografar a Praça Mauá, local onde havia um telão e centenas de torcedores estariam prontos para sorrir ou chorar. Mas no caminho, muito trânsito.


Ao chegar a cerca de uma quadra da praça, pulei do carro e saí correndo para tentar ver alguma cobrança. Quando cheguei, era uma tristeza total: o Brasil já estava eliminado. Demorei um tempo para entender a situação, afinal, o homem estava certo, tecnicamente, eu não vi a eliminação. Que loucura.


Tempos depois, o encontrei novamente, mas o viajante estava diferente. Menos vívido e com uma cara de cansado. Talvez fossem as sequelas da viagem no tempo. Tive que reconhecer que ele acertara a aposta, o Brasil fora eliminado, e eu não assisti. Ele mexeu a cabeça e respondeu: “Eu sei, vim do futuro”. E sumiu pela calçada movimentada.


Na semana passada, no sábado, fui comprar jornal e não vi a figura. Perguntei ao atendente por onde andava o viajante do tempo, e ele me respondeu que não o via há semanas. Ao que parece, sumiu sem deixar rastros. Soube que, na última aparição, ao ler uma manchete sobre aquecimento global, comentou que o mundo ia acabar. Depois disso, desapareceu. Certamente, retornou ao seu irreversível futuro pós-apocalíptico. Boa semana!


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