O menino e o trem

Era uma tarde quente, destas que somente o aquecimento global pode nos proporcionar em pleno inverno

Por: Matheus Tagé  -  21/08/23  -  06:12
Atualizado em 21/08/23 - 08:00
De onde estava, era possível escutar a buzina do trem que vinha no Porto
De onde estava, era possível escutar a buzina do trem que vinha no Porto   Foto: Matheus Tagé/Arquivo AT

Era uma tarde quente, destas que somente o aquecimento global pode nos proporcionar em pleno inverno. Na televisão de um restaurante de esquina, uma matéria mostrava imagens de um personagem com aspecto um tanto bizarro e descabelado, que estava ganhando espaço e destaque na corrida presidencial da Argentina. No Centro de Santos, pessoas passavam apressadas por entre fachadas descascadas e antigas lojas abandonadas. Alguns voltavam do almoço para o trabalho, outros a caminho do ponto de ônibus; alguns iam em direção à travessia da barca. Tudo era movimento, e o sol projetava sombras que mergulhavam no asfalto; em algumas vias mais antigas, as silhuetas se contorciam ensandecidas, permeando os paralelepípedos.


Uma senhora que assistira ao telejornal pela porta do restaurante vinha caminhando com dificuldade enquanto carregava algumas pesadas sacolas de compras; vindo do Centro em direção à avenida portuária. Ela transpirava e parecia estar exausta, quando se encostou em uma parede para tomar ar e descansar os braços. De onde estava, era possível escutar a buzina do trem que vinha no Porto. Enquanto recuperava o fôlego, observava alguns meninos passando correndo pelas ruas, em direção à Praça da República.


Ao tomar coragem para recomeçar a andança, a senhora notou que um menino, que estava com o grupo, veio em sua direção. Vendo a dificuldade da mulher, o garoto, um tanto prestativo, ofereceu ajuda para carregar as compras; e a senhora aceitou. De longe, um outro menino gritou: “Não esquece o trem!”. Enquanto caminhavam, pareciam conversar. A senhora carregava duas sacolas pesadas, e o garoto ajudava com outras três repletas de compras de mercado.


Eles iam caminhando devagar. O menino parecia querer acelerar o passo, pois não muito longe dali o trem começava a se movimentar após a parada em algum terminal. Caso demorassem muito, a composição travaria a passagem para a barca, e ficariam parados ali na avenida, até que acabassem os vagões - já que a senhora não queria subir pela passarela. E ao que parece, os amigos estavam com pressa, pois queriam ‘surfar’ no trem.


mas a senhora não tinha pique e caminhava lentamente, para desespero do garoto, que andava e olhava para trás, arrependido de ter interrompido a programação para ajudá-la. No ritmo da idosa, pararam em frente à avenida. O menino, angustiado, tentava convencê-la a atravessar, já que os caminhões estavam longe. Mas a senhora preferia esperar, por segurança. O menino batia os pés descalços no chão, aflito pela demora e excesso de cuidado da mulher.


Após alguns carros e caminhões passarem espaçadamente, a senhora olhou para o menino, como forma de constatar que agora poderiam ir. Eles atravessaram devagar, mas o trem já se aproximava. Os outros dois garotos saíram correndo apressados em direção aos trilhos e passaram ao lado dos dois na avenida. “Não vai perder o trem!” brincou um deles. A senhora sorria e balançava a cabeça. O menino bufava entediado, preso às sacolas de compras.


O trem passava em velocidade relativamente lenta, e os dois garotos correram pela avenida seguindo os vagões. Numa arriscada acrobacia, um dos meninos saltou em direção a uma conexão. Após alguns instantes, ele apareceu, já pendurado e chamando o outro para fazer o mesmo. O amigo, que era um pouco menor, correu para pegar impulso, enquanto tateava a lateral de um vagão; ele parecia um pouco menos ousado, mas mesmo assim, fez um salto.


A senhora e o garoto observavam tudo da avenida, com as sacolas na mão. Porém, pareciam um pouco inquietos, pois o segundo garoto ainda não aparecera em cima do trem. E conforme o tempo passava, o trem ia embora.


Eles tiveram que esperar a composição inteira acabar para atravessar o trilho e ver se o menino havia caído ou se estava bem; pois até então, nada do garoto. O menino abaixou a cabeça e colocou as sacolas no chão, em frente à entrada do terminal das barcas. A senhora deu um chocolate como pagamento pela ajuda do garoto. Ao voltar, olhava ao longe o trem indo embora, já impossível de alcançar correndo.


Atravessou a rua e abria o chocolate, quando escutou um grito: “Espera aí!”. Eram os amigos que foram surfar no trem. Pareciam estar ilesos, apesar do altíssimo risco da brincadeira. Eles dividiram a barra e saíram correndo; desaparecendo de vista por entre as ruas do Centro. Do outro lado da avenida, a senhora entrava na barca com ajuda de alguns passageiros, para carregar as sacolas. O trem desaparecia pela linha férrea, dourada pela incidência do sol, indo para os confins de algum lugar distante, onde outros vão se arriscar neste impiedoso esporte. Para aqueles meninos, sempre haverá outro trem. Boa semana!


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