O labirinto da violência

Estamos assistindo por meio de telas a transmissão ao vivo da história de mais uma grande tragédia humanitária

Por: Matheus Tagé  -  16/10/23  -  06:33
  Foto: Hatem Ali/ Associated Press/ Estadão Conteúdo

Uma pancada de chuva caía na tarde do feriado da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, que também é o Dia das Crianças. Na sala, o volume alto da televisão competia com o ruído do temporal batendo nos vidros das janelas. A cachorra rosnava para a trovoada, e as crianças brincavam arremessando bonecos escaladores – com braços e pernas adesivos – na parede, competindo para ver qual descia mais rápido. Enquanto brincava, minha filha mostrava orgulhosa o sorriso banguela. Um dente de leite, que estava mole há mais de uma semana, havia se soltado – e ela pulava contente com o dentinho na mão. Um feriado normal.


Em paralelo à cena, na televisão, uma apresentadora narrava o bombardeio em Gaza, tal qual um jogo de futebol. Em tempo real, assistíamos o contraste entre o caos apocalíptico de um conflito de proporções gigantescas, em meio a uma tarde de rotina. As redes, incessantemente alimentadas por imagens vindas de infinitos aparelhos celulares, colaboravam para a edificação de um estado fluido de incômodo e estranhamento.


Se observarmos a sequência de notícias da última semana, jornais, canais de televisão, e perfis de redes sociais multiplicavam sucessivamente cenas e fatos sobre a situação. Todas em uma condição de fragmento. Trechos e recortes de historicidade em fluxo. Contextualizadas temporalmente, ou não, estas frações de narrativas foram publicadas em progressão geométrica, de forma a intensificar perspectivas sobre o conflito – resultado de uma histórica problemática geopolítica. Um episódio construído de forma transmidiática, por múltiplos autores, em meio a um mosaico de fatos e representações. Tudo ao mesmo tempo.


Há que se observar, assim como em outros conflitos contemporâneos, que estamos assistindo por meio de telas a transmissão ao vivo da história de mais uma grande tragédia humanitária. O conflito está longe de uma relação de proporcionalidade. Ainda que observemos alguns interlocutores tentando emplacar esvaziamentos de temporalidade, a tentativa de objetivação, talvez, não seja suficiente diante da intrincada trajetória da região. Não podemos ignorar a contextualização histórica enquanto processo que alimenta a espiral de violência, a fim de não nos precipitarmos no vazio da superficialidade.


Acompanhamos um esforço do Brasil, que atualmente preside o Conselho de Segurança da ONU, em trazer abordagens diplomáticas equilibradas, para tentar conter a escalada de violência e, evidentemente, suas consequências para civis que sofrem, de ambos os lados. Em paralelo a este breve contexto, imagens e mais imagens por meio das múltiplas telas que nos envolvem.


Chamou-me a atenção, em pleno 12 de outubro, uma matéria com um vídeo de um menino brasileiro de 11 anos que aguardava repatriação e estava abrigado em uma escola, na Faixa de Gaza, local onde ocorrem intensos bombardeios. O menino diz que se sentia protegido naquele espaço. “Aqui, a gente não pode morrer”, dizia o garoto, que sorria enquanto falava. A cena, para mim, foi extremamente chocante. Do ponto de vista das teorias de recepção da imagem, o teórico Roland Barthes chama este processo de Punctum, uma espécie de quebra de paradigma visual. Embora não houvesse explosões, tiros ou outra representação de violência no quadro, a fala e o contexto do personagem chocam profundamente.


A experiência estética, em sua lógica de repetições, nos condicionou a familiarizar determinadas construções visuais. Uma cidade sendo bombardeada, prédios destruídos, o clarão de mísseis cortando a escuridão da noite e o som fulminante das bombas são convenções na transmissão de imagens de guerras e conflitos em todas as mídias. No contexto contemporâneo, as narrativas se fragmentam em uma dinâmica rizomática de conteúdos, que elaboram óticas distintas sobre um mesmo problema. Porém, a ideia de uma criança sorrindo por se sentir segura dentro de uma escola, no meio de uma cidade devastada, é um tanto quanto estarrecedora.


Das cenas horríveis e lamentáveis que vimos nesta última semana, e ao que parece, devem se intensificar, verificamos que, infelizmente, a presença dessas imagens-fluxo nos força a normalização de um imaginário de violência constante. Mas foi a fala do menino, que elogiava o lugar limpo e seguro em que estava, que provocou um impacto devastador na representação do conflito. Para além de prédios destruídos, que criam uma espécie de não lugar nos registros de guerras, a percepção humanizada do fato talvez seja mais perturbadora. Não por acaso, o abrigo era uma escola: o bom senso nos obriga a esperar que este espaço seja preservado.


Espero que os muros da escola resistam às bombas. E há que se torcer para que esse menino – bem como outras crianças e demais civis – encontre algum lugar na Terra, em que “não se possa morrer”. Talvez algum espaço para arremessar bonecos escaladores, enquanto o único ruído na janela seja de chuva e não mísseis explodindo. Boa semana!


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