Nada será como antes

Tendências apontam para um crescimento no consumo de produções imersivas que promovam alguma forma de interação

Por: Matheus Tagé  -  02/10/23  -  06:31
  Foto: Arquivo/AT

A pequena menina gargalhava olhando para a tela do celular. Devia estar assistindo a algum vídeo no YouTube, uma animação, ou até jogando. Para onde ia, levava o aparelho, como quem carrega um mundo de histórias e coisas interessantes. Às vezes, perguntava aos pais, para saber o que estava escrito em uma descrição de vídeo de alguma série que acessava no celular, ou em um game, para entender as informações textuais que apareciam dentro da mecânica de agenciamento de fases.


Na verdade, a situação não é muito diferente da de outras crianças da mesma idade. A geração nascida neste século 21 parece que já traz de fábrica uma certa tendência e facilidade de interação com ferramentas digitais, uma habilidade impressionante para games, e um gosto explicitamente aguçado para narrativas não lineares que habitam ambientes tecnológicos e virtuais. Isto tudo antes mesmo de aprender a ler.


Parece curiosa a forma como a fragmentação de histórias e a possibilidade de imersão estimulam o receptor de todas as idades. Diferente da temporalidade de consumo do livro, ou mesmo do cinema, em que há uma espécie de ritual para a percepção da história, no celular o tempo é obliterado. Isso acontece pelo fato de que há uma estética de aceleração que permeia as relações com o meio. Não é preciso esperar as luzes se apagarem na sala de exibição, ou se sentar numa poltrona confortável em algum lugar silencioso: na verdade, silêncio é uma condição que não existe mais.


A aceleração das imagens em pequenas telas e a multiplicidade de conteúdos que se desdobram e criam milhares de informações desconexas entre si parecem ser um processo mais atraente para os espectadores contemporâneos. O filósofo Guy Debord, no livro A Sociedade do Espetáculo, publicado em 1967 – e assustadoramente atual – discutia que o espetáculo não está necessariamente no conjunto de imagens, mas, sim, na relação social entre pessoas, condicionada à mediação por conta dessas imagens. Para o autor, o acúmulo de representações visuais constrói um processo de alienação do mundo e da realidade.


Nesse sentido, ao que parece, as tendências apontam para um evidente crescimento no consumo de produções imersivas que promovam alguma forma de interação – como os games, por exemplo. Mas isso não fica apenas no campo da ficção: até mesmo a forma de consumo de notícias e informações passa por esse processo de gamificação. Observemos como assuntos banais, e certamente bizarros, assumem o protagonismo no ambiente midiático: um drama pessoal de alguma cantora, ou de um jogador de futebol, um homem com uma espada de samurai que espanta assaltantes em um condomínio, enfim, a busca por engajamento é estruturada por meio de uma lógica de efemeridade. Consumimos, interagimos e esquecemos. Isso acontece rapidamente: novas informações surgem para ocupar esses espaços.


Nesse processo, imagens e sentidos se descolam do real e, ao acelerar o tempo, interrompem os mecanismos da memória. Afinal de contas, no fim do dia, será que alguém consegue se lembrar de alguma informação que leu de manhã em alguma rede social? Creio que não. A flexibilização dos mecanismos de informação provoca uma consequência um tanto cruel: a supressão do direito à nostalgia, uma vez que esses fragmentos, atrelados à prerrogativa de velocidade, por vezes, já não carregam atmosferas de vivências, mas apenas estímulos fugidios.


Contudo, a menina do começo desta história me surpreendeu. Em idade de alfabetização, minha filha observava as lombadas dos livros na estante e leu um título. Ela lia de forma cadenciada, juntando as sílabas, como se tentasse adivinhar, para poder formar o sentido das palavras. Apesar da estruturação dos meios que nos forçam a consumir imagens o tempo todo, é interessante observar a mágica que há no processo de leitura, e traz certa curiosidade acerca das futuras transformações na produção e consumo de histórias.


Há que se observar o quanto o advento da linguagem escrita nos liberta da hegemonia das imagens em fluxo. Ao ler outro título, ela me perguntou: “Mas quem é este velho do mar?”, se referindo ao livro de Ernest Hemingway. Eu poderia buscar alguma ilustração no Google ou mesmo no livro para mostrar alguma representação do personagem, mas preferi fazer um resumo da história para que ela pudesse entender o enredo. Após a surpresa pelo desfecho, ela voltou a me perguntar quem era aquele pescador; e mais especificamente, como aquele homem podia enfrentar tudo aquilo sendo tão velho. A percepção lúdica do imaginário literário permite preencher visualmente o perfil do personagem construído por palavras. Respondi que ele era exatamente como ela havia imaginado enquanto eu contava. Ela sorriu e olhou para a estante, certa de que um novo mundo começava. Boa semana!


Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha editorial e ideológica do Grupo Tribuna. As empresas que formam o Grupo Tribuna não se responsabilizam e nem podem ser responsabilizadas pelos artigos publicados neste espaço.
Ver mais deste colunista
Logo A Tribuna
Newsletter