Artista de trânsito

Se o trânsito fluísse e o homem ainda estivesse no meio da travessia? Os motoristas pararam para observar o artista

Por: Matheus Tagé  -  30/10/23  -  06:09
  Foto: Vanessa Rodrigues/A Tribuna

É cedo. Jogo a mochila no banco do carona, antes de ligar o carro. Pego o cabo do celular para ligar o aplicativo de geolocalização a fim de traçar a rota – ainda que faça o mesmo caminho todos os dias, me acostumei a olhar a tela para ver o trânsito. Ou, quem sabe, na ânsia de algum transtorno obsessivo, o inconsciente me provoque: e se mudarem o sentido das ruas de um dia para o outro? Pois é, no mundo de hoje, nunca se sabe.


Saio da garagem. Em outro aplicativo, já começo o dia metodicamente com uma mesma playlist. Por força do hábito, um mesmo questionamento me surge pela manhã: procuro alguma explicação para o fato de não surgirem músicas ou artistas interessantes há mais de 20 anos. Hendrix responde com sua guitarra rasgando a textura sonora de Crosstown Traffic, do álbum Eletric Ladyland, de 1968. Não dá para comparar.


No caminho, muito trânsito. Motoqueiros alucinados arriscam ultrapassagens milimétricas por entre os veículos parados. Em meio ao ritmo cinzento de carros, fumaça, prédios, e ruídos da cidade em movimento, escuto uma sirene vinda de longe. Em segundos, a ambulância passa em ritmo acelerado pelo vão central de uma via com duas pistas – como se fosse uma motocicleta.


O fluxo de veículos começa a andar um pouco. Mais à frente, uma bifurcação divide o tráfego. Por sorte, fico no lado esquerdo, escapando do congestionamento. Adiante, outra parada: desta vez, uma obra no meio da rua. Os carros começam a desviar, e a confusão aumenta com alguns pedestres que atravessam correndo para alcançar o ônibus que começava a sair do ponto, no outro lado da rua movimentada.


Passado isso, o caminho parece fluir. Algum tempo depois, entro em uma rua que desemboca em uma rota diferente da normal. Talvez seja o aplicativo me ajudando a desviar de algum outro congestionamento. Porém, acabo parando em outra fila. O semáforo abre e fecha, mas os carros não saem do lugar. À minha direita, observo o motorista da Kombi de um distribuidor de abacaxis mexendo no celular; na esquerda, uma senhora idosa forçando a vista para tentar enxergar a dimensão da fila. Pelo retrovisor, vejo um casal tentando conter crianças pulando no banco de trás. Que dia!


De repente, na altura da faixa de pedestres, alguns carros adiante, um homem começa a prender uma corda elástica no poste. Ele atravessa a rua e amarra a outra ponta também. A corda esticada parecia atingir, mais ou menos, a altura do teto dos veículos. Ele pisa na corda, para tomar altura, e começa a atravessar a rua. Tratava-se de um equilibrista em meio ao alucinante ritmo do trânsito.


O semáforo era uma variável de dificuldade: se o trânsito começasse a fluir, e o homem ainda estivesse no meio da travessia? Os motoristas em volta pararam o que faziam para observar o artista de rua. Eu também pausei o som para prestar atenção. Ele começava a completar a primeira parte do trajeto quando resolveu fazer malabarismo com argolas. Outro nível de dificuldade. Ao se aproximar do meio da corda, um susto: o barulho de uma sirene começou a ficar mais alto. Na avenida em sentido perpendicular, uma viatura de polícia passa voando por trás do equilibrista e ele se desconcentra, balançando na corda. Com isso, uma argola escapou e foi parar debaixo de um caminhão. Para delírio e choque dos espectadores, a manobra começava a ficar arriscada. O homem cambaleava na corda. Dava dois passos para a frente e logo saltava torto para trás, com os braços abertos tentando se equilibrar – mas parecia estar descontrolado.


Por um momento, lembrava uma cena de circo. Então, a plateia congelada viu o homem cair. Mas em vez de despencar no asfalto, ele largou as outras argolas, e se segurou firme na corda, fazendo um giro duplo impressionante, voltando para cima e se reequilibrado. Os motoristas aplaudiram e buzinaram, entusiasmados.


A senhora do carro ao lado, provavelmente, não enxergava a corda, e abaixou o vidro para falar algo comigo. “Tem um rapaz em cima do carro?”. Respondi que era um artista e estava fazendo uma performance. A senhora agradeceu a informação. O equilibrista terminou o percurso ovacionado: flutuara sobre o asfalto como um bailarino. Ao pousar na calçada, desamarrou a corda e atravessou para soltar a outra ponta. Logo o semáforo abriu e o trânsito voltou a fluir. Os espectadores retornavam também à suas atividades cotidianas dentro do carro. Eu voltava a escutar música e me perguntava: como não conseguiram inventar nada interessante nos últimos anos? Boa semana!


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