Saio da garagem. Em outro aplicativo, já começo o dia metodicamente com uma mesma playlist. Por força do hábito, um mesmo questionamento me surge pela manhã: procuro alguma explicação para o fato de não surgirem músicas ou artistas interessantes há mais de 20 anos. Hendrix responde com sua guitarra rasgando a textura sonora de Crosstown Traffic, do álbum Eletric Ladyland, de 1968. Não dá para comparar.
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De repente, na altura da faixa de pedestres, alguns carros adiante, um homem começa a prender uma corda elástica no poste. Ele atravessa a rua e amarra a outra ponta também. A corda esticada parecia atingir, mais ou menos, a altura do teto dos veículos. Ele pisa na corda, para tomar altura, e começa a atravessar a rua. Tratava-se de um equilibrista em meio ao alucinante ritmo do trânsito.
O semáforo era uma variável de dificuldade: se o trânsito começasse a fluir, e o homem ainda estivesse no meio da travessia? Os motoristas em volta pararam o que faziam para observar o artista de rua. Eu também pausei o som para prestar atenção. Ele começava a completar a primeira parte do trajeto quando resolveu fazer malabarismo com argolas. Outro nível de dificuldade. Ao se aproximar do meio da corda, um susto: o barulho de uma sirene começou a ficar mais alto. Na avenida em sentido perpendicular, uma viatura de polícia passa voando por trás do equilibrista e ele se desconcentra, balançando na corda. Com isso, uma argola escapou e foi parar debaixo de um caminhão. Para delírio e choque dos espectadores, a manobra começava a ficar arriscada. O homem cambaleava na corda. Dava dois passos para a frente e logo saltava torto para trás, com os braços abertos tentando se equilibrar – mas parecia estar descontrolado.
Por um momento, lembrava uma cena de circo. Então, a plateia congelada viu o homem cair. Mas em vez de despencar no asfalto, ele largou as outras argolas, e se segurou firme na corda, fazendo um giro duplo impressionante, voltando para cima e se reequilibrado. Os motoristas aplaudiram e buzinaram, entusiasmados.
A senhora do carro ao lado, provavelmente, não enxergava a corda, e abaixou o vidro para falar algo comigo. “Tem um rapaz em cima do carro?”. Respondi que era um artista e estava fazendo uma performance. A senhora agradeceu a informação. O equilibrista terminou o percurso ovacionado: flutuara sobre o asfalto como um bailarino. Ao pousar na calçada, desamarrou a corda e atravessou para soltar a outra ponta. Logo o semáforo abriu e o trânsito voltou a fluir. Os espectadores retornavam também à suas atividades cotidianas dentro do carro. Eu voltava a escutar música e me perguntava: como não conseguiram inventar nada interessante nos últimos anos? Boa semana!