A arte de ver navios

Matheus Tagé. Fotojornalista e doutor em Comunicação.

Por: Matheus Tagé  -  18/09/23  -  06:35
O homem era o único que anotava as coordenadas dos navios, no mesmo banco, sob a mesma árvore, todos os dias
O homem era o único que anotava as coordenadas dos navios, no mesmo banco, sob a mesma árvore, todos os dias   Foto: A Tribuna

O senhor acordava cedo todos os dias. Antes das compras na padaria, e da passagem pela banca de jornal, ele ia até o jardim da praia. Caminhava alguns metros, como se buscasse um respiro profundo de brisa matinal e se sentava em um banco, ao lado de uma velha e robusta árvore cinquentenária. Para atenuar o calor, era a sombra que buscava. Ficava lá observando o movimento da praia e a chegada dos navios pela baía em direção ao Porto.


Logo que se sentava, tirava do bolso da camisa de botão um bloquinho de papel e uma caneta, itens que parecia carregar por toda parte. De toda sorte, ao que parece, tratava-se de alguma forma de registrar o mundo – talvez fosse escritor, ou poeta, ou alguém que simplesmente tomava nota de tudo. E era curioso como olhava para todos os detalhes à sua volta, principalmente os navios. Os gigantes de metal, que atravessavam as águas calmas rumo ao atracadouro, eram alvo de sua regulação constante. Observava atento a manobra de entrada. Assim que despontavam no horizonte, um a um, passavam por sua rigorosa análise técnica. Primeiro, ele checava o horário no relógio de pulso, depois começava a fazer anotações – tudo a partir do banco da praia.


Era um homem analógico, não utilizava celular nem nada que remetesse a alguma forma de tecnologia. O relógio de pulso, de ponteiro, era a única ferramenta mecânica que carregava, como apoio para as suas notas. Vez ou outra, encontrava algum amigo que lhe distraía com assuntos do dia. Mas ele estava sempre focado nos navios que passavam. Enquanto conversava, mantinha a atenção no mar. Depois de cerca de uma hora de observação, se levantava, e voltava para os afazeres diários.


Pela manhã, na praia, há muitos personagens. Uns praticam exercícios, outros se banham no mar, alguns apenas caminham ou tomam sol. Mas o homem era o único que anotava as coordenadas dos navios, no mesmo banco, sob a mesma árvore, todos os dias. Certa vez, um sujeito que parecia ser conhecido dele, indagou: “Mas afinal, o que tanto você anota neste bloquinho?”. E o homem respondeu: “Alguns registros apenas, faço isso desde menino”. Parecia que o senhor mantinha aquela prática há muito tempo. Aquela manhã estava quente, e após a conversa, guardou o bloquinho, tirou do mesmo bolso da camisa um pequeno pente e ajeitou os cabelos brancos para trás, antes de se levantar e ir embora.


Outro dia desses, o céu estava meio cinzento, o mar mexido, e apesar de não haver mais ninguém na praia, lá estava o senhor sozinho no banco fazendo anotações. Passei por ele e resolvi me intrometer: “Hoje está com cara de chuva, hein?”. O senhor, educadamente, me respondeu: “Parece que sim, mas enquanto não chove, eu fico por aqui”. Ali do calçadão, conforme a tempestade se aproximava, a visibilidade piorava; os navios que entravam pela barra eram envoltos por uma espécie de nevoeiro. “O senhor consegue ver bem os navios com esse tempo?”, perguntei. Ele me respondeu enfático: “O problema é o vento, logo vai chover, preciso ser rápido aqui”.


Entendi que estava distraindo o trabalho dele e resolvi me despedir. O vento já soprava mais forte, e a chuva se precipitava. Uns poucos ambulantes, que se arriscaram com aquele tempo fechado, já recolhiam os carrinhos e fugiam da praia vazia. Eu, com câmera na mão, me abriguei debaixo da cobertura de um quiosque, para fazer algumas imagens do temporal. O homem permanecia até o último minuto no banco.


O primeiro trovão foi um estrondo, a ventania se intensificou e a chuva começou. Foi um corre-corre, o senhor saiu do banco, tentou buscar alguma cobertura. Na pressa, a caneta caiu e o bloquinho se desmontou, disparando suas folhas com anotações para todo lado. O homem ficou desesperado, mas já era tarde, o árduo trabalho foi perdido. Algumas folhas voaram para perto de onde eu estava. No ímpeto de ajudar, fui resgatar algumas, mas a chuva não dava trégua e despedaçava a materialidade efêmera do papel. Uma última folha pousou e ficou grudada pela umidade em um poste de iluminação. Guardei a câmera na mochila e fui tentar pegar. Para minha surpresa, não havia nenhuma anotação no papel. Na folha havia apenas um desenho de um navio, com todos os detalhes, feito à caneta. Debaixo da chuva, fiquei refletindo sobre a imagem que se desintegrava pela força da tempestade, fazendo com que os contornos de tinta azul fossem dissolvidos, como se virassem mar e engolissem o despedaçado navio que já não existia. Afinal, o homem desenhava navios. Boa semana!


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