
Foto ilustrativa (Freepik)
Mariano caminhava vagarosamente pelas alamedas do antigo bairro do Estouro, observando as folhas envelhecidas de alguns ipês. Conforme avançava pela calçada estreita, o vento trazia de longe, qual sopro misterioso, as melodias de uma nostálgica canção. Uma voz suave, inconfundível, que arranhava um espanhol com sotaque carregado da América do Norte.
“Ansiedad de tenerte en mis brazos,musitando palabras de amor. Ansiedad de tener tus encantos, y en la boca volverte a besar”.
Nat King Cole! Rapidamente Mariano identificou o dono daquela voz. Pôde criar, em sua tela mental, a imagem do disco a girar em uma antiga vitrola. Um quarto, uma sala, quintais, a rua toda recebendo aquele perfume em forma de notas musicais. Sobre um piso de tacos de madeira, dançava com a sua amada Izabela. Dois pra lá. Dois pra cá. Mãos entrelaçadas. Olhares apaixonados. Um beijo.
Envolvido pela imaginação, e com mais algumas dezenas de passos, Mariano pôde ouvir com mais clareza o chiado captado pela agulha. E a música avançava, no doce compasso daquela manhã. Logo, estava diante da ‘casa-mágica’. Apenas alguns degraus separavam a calçada da porta de entrada, que estava aberta.
Curioso, lançou um olhar para dentro da sala. Sentiu-se atraído por aquele ambiente rústico e ao mesmo tempo tão familiar. Escalou os degraus, com um misto de curiosidade e receio, quando foi surpreendido por um simpático senhor, que aparentava avançada idade.
“Bem-vindo, filho”.
Mariano assustou-se. Não sabia o que dizer.
“Desculpe. Eu ouvi esta música antiga, tão bonita... Recordei da minha falecida esposa e não pude controlar a minha curiosidade”, disse, tentando justificar a sua presença.
Expressando bondade no olhar, o velhinho respondeu.
“Essa curiosidade, essa atração, são perfeitamente naturais. Há situações que marcam a alma da gente de tal maneira que é impossível esquecer. E quando nos encontramos diante dessas lembranças, muitas sensações voltam para despertar os nossos sentidos, as nossas emoções mais caras”.
Por um momento, Mariano fechou os olhos. Sentiu o perfume de Izabela, o toque de suas mãos, a maciez de sua pele e o afago nos cabelos. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto.
“A vida é feita de momentos felizes e tristes. Cabe a nós decidir quais ocuparão mais espaço em nosso coração e em nossos pensamentos”, prosseguiu o simpático idoso.
Mariano tentou se recompor. Passou rapidamente a mão pelo rosto. Não entendia como podia estar na casa de um estranho, atraído por uma música tão antiga e envolvido em tantas recordações.
“Não tenha vergonha dos seus sentimentos. A vida nem sempre segue um rumo desejado ou planejado. Você fez o que podia. Agora, pense em você e lute por sua felicidade”, disse o anfitrião, antes de virar-se e caminhar para algum outro cômodo da residência.
“Obrigado, senhor. Mas, qual é o seu nome?”, perguntou Mariano, com a voz tomada pela emoção.
Com um olhar sério, o misterioso anfitrião respondeu, por fim, antes de desaparecer.
“O meu nome real não importa, mas pode me chamar de passado. Agora vá e viva o futuro. Ele ainda existe e te espera de braços abertos. Só depende de você”.