Pluralidade do sistema sindical portuário

Não existe sistema sindical mais complexo, e interessante, do que o portuário

Por: Lucas Rênio  -  07/11/23  -  06:20
  Foto: Carlos Nogueira/AT/Arquivo

Não existe sistema sindical mais complexo, e interessante, do que o portuário! Essa distinção se deve, dentre outros fatores, à multiplicidade de entidades sindicais que atuam em prol da mesma categoria. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê, desde a sua redação original (1943), que cada categoria só pode ser representada por um sindicato dentro da mesma base territorial. Em 1988, a Constituição Federal recepcionou tal regra e especificou que esse limite territorial corresponde ao âmbito municipal.


Isso significa que pode haver um sindicato da mesma categoria em cada estado, e até mesmo um por município, mas é vedada a coexistência de dois ou mais sindicatos, com idêntica representação, na mesma base municipal. Trata-se do princípio da unicidade sindical, que comporta apenas uma exceção: a subdivisão de categorias diferenciadas, em função da existência de leis específicas e de características altamente peculiares, que as distingam dentro de um grupo aparentemente homogêneo.


No período pré-modernização dos portos, antes da Lei Federal 8.630/1993, era admissível sustentar que cada uma das seis atividades do trabalho portuário se constituía como categoria diferenciada. Primeiro porque não havia exata correspondência entre os atores sociais econômicos que executavam os serviços de estiva e capatazia, circunstância esta que culminava até mesmo numa repartição de contratantes e de responsabilidades: entidades estivadoras, de um lado, e Cias. Docas, de outro. A responsabilidade pela carga variava de acordo com a etapa operacional, recaindo sobre a Cia. Docas, na movimentação entre o armazém e o costado, e sobre a entidade estivadora dentro do navio.


Em segundo lugar, as regras legais aplicáveis a cada atividade (ou “categoria”) do trabalho portuário eram individualizadas. Embora o regramento da estiva e da capatazia estivesse concentrado na CLT, cada qual recebia tratamento singular, com parâmetros inconfundíveis. Quanto às demais atividades (bloco, conferência, vigilância e conserto), cada uma delas era regida por lei própria. Essas distinções deixaram de existir na era pós-modernização.


O novo marco regulatório unificou, na figura do operador ou terminal, a responsabilidade por todas as etapas da movimentação portuária. Consequentemente, o trabalho portuário passou a ter um só contratante para os serviços de estiva e capatazia e todos os outros. Além disso, as seis atividades do trabalho portuário passaram a ser regidas pela mesma norma. A criação da multifuncionalidade também pode ser citada como um fator que reforçou, a partir de 1993, esse conceito de que há apenas uma categoria: trabalhador portuário.


De lá para cá, não há dúvida de que a categoria do trabalho portuário é una. São seis atividades, de uma só categoria profissional. Diante disso, e em observância ao princípio constitucional da unicidade, Santos só deveria ter um sindicato representando as seis atividades. Entretanto, não é isso que a Lei Federal 12.815/2013 prevê, pois o seu artigo 40 considera cada atividade como categoria diferenciada.


Na prática, em função desse dispositivo legal e das raízes históricas do movimento operário no cais, o sindicalismo portuário é um sistema de pluralidade que resiste à unicidade imposta pela Constituição Federal. Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) não analisa a questão, essa tradição vigora.


Pesquisas apontam que no Porto de Santos, cuja relação capital-trabalho chegou a conviver com a atuação simultânea de mais de dez sindicatos, essa pluralidade começou no final da década de 1920. Naquela época, o labor era substancialmente braçal e a carga, mais precisamente as sacas de café, era transportada até as embarcações com a participação de um grande contingente de trabalhadores, que as carregavam nas costas. Desse grupo originou-se o Sindicato dos Operários no Comércio Armazenador, Carregadores e Ensacadores de Café de Santos, em 1919. Eles eram conhecidos como trapicheiros e havia uma discussão sobre quem deveria ser melhor remunerado pelo labor: os que levavam as cargas até o cais, ou aqueles que as arrumavam no interior das embarcações.


Desse imbróglio nasceu o Sindicato dos Estivadores de Santos, fundado em 1930 pela parcela de trabalhadores que recebia as cargas e as arrumava a bordo. Essa teria sido a cisão originária entre os dois grandes grupos do trabalho portuário: estiva e capatazia.


A pluralização do trabalho aumentou nas décadas seguintes. Do Sindicato dos Estivadores se originaram outras subdivisões: Sindicato dos Trabalhadores do Bloco, Sindicato dos Consertadores, Sindicato dos Conferentes de Carga e Descarga e Sindicato dos Vigias Portuários. Essas entidades são conhecidas como sindicatos tradicionais de avulsos.


A capatazia, representada inicialmente pelo Sintraport, começou a se desmembrar entre as décadas de 1930 e 1940, quando foi fundado o Sindaport. A partir disso, a representação sindical da capatazia ficou dividida em dois grupos: os trabalhadores com funções estritamente operacionais continuaram sob a tutela do Sintraport, enquanto o pessoal administrativo passou a se agrupar no Sindaport.


Na década de 1960, os operadores de guindastes, que eram representados pelo Sintraport, fundaram a Associação Profissional dos Motoristas em Guindaste do Porto de Santos, que gerou o Sindicato dos Motoristas em Guindaste do Porto de Santos (atual Sindogeesp). Durante alguns anos o Sindrod (motoristas de caminhões) e o SCCPS (conferentes de capatazia) também absorveram grupos de trabalhadores da capatazia. O Settaport, que tradicionalmente negociava com as entidades estivadoras, passou a estender sua representatividade na era pós-modernização para englobar os empregados dos terminais e operadores portuários.


Disso resultou que, nos assuntos relativos aos empregados, uma parte dos terminais e operadores ficou representada Settaport e outra pelo Sindaport. A representação a nível de federação também se pluralizou, com três entidades de base territorial nacional: Federação Nacional dos Estivadores, Federação Nacional dos Portuários e Fenccovib.


Na esfera patronal, a tônica é a unicidade. No Porto de Santos atuam um sindicato estadual, que também engloba o Porto de São Sebastião, e uma federação nacional. Além dessas entidades sindicais, existem outras com natureza associativa. As associações patronais representam os interesses da categoria de modo geral, ou segmentado, de acordo com o tipo de operação.


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