Exclusividade não combina com equidade

Reserva de mercado por exclusividade não pode ser entendida como direito absoluto

Por: Lucas Rênio  -  28/03/23  -  06:32
A predominância da atuação masculina é uma das características mais marcantes do trabalho portuário
A predominância da atuação masculina é uma das características mais marcantes do trabalho portuário   Foto: Carlos Nogueira/AT/Arquivo

Não tenho dúvida de que a participação feminina é relevante e produtiva em todas as áreas da sociedade. No âmbito específico do trabalho portuário, isso não é diferente! Muitos são os exemplos de mulheres que contribuíram, e continuam contribuindo, de modo diferenciado para a evolução social e econômica da relação capital-trabalho nos portos.


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Sandra Lia Simón, por exemplo, foi quem teve a visão estratégica de criar a Coordenadoria Nacional do Trabalho Portuário e Aquaviário do Ministério Público do Trabalho (MPT), em sua gestão como procuradora-geral do trabalho. Entretanto, a predominância da atuação masculina é uma das características mais marcantes do trabalho portuário. Trata-se de realidade pública e notória que se espraia, historicamente, pelos portos do mundo inteiro.


Pesquisas apontam que, na primeira década do século 20, de modo pioneiro, as operações portuárias na Finlândia e na Suécia contavam com a atuação de portuárias. Outra pesquisa, cuja análise envolveu a participação das mulheres em 70 portos, com dados que se estendiam até a década de 1970, verificou que elas compunham cerca de 17% do contingente de trabalhadores. A equidade estava distante não só em termos quantitativos, mas, também, no aspecto remuneratório: os homens ganhavam mais.


Recentemente a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), em parceria com a Wista, divulgou os resultados da elogiável Pesquisa sobre Equidade de Gênero no Setor Portuário e Marítimo. O referido estudo constatou que as mulheres ocupam 17,3% das vagas no setor portuário brasileiro, índice que está bem próximo da média mundial de 18%. Verificou-se, ainda, que apenas 13% dos cargos de direção no setor portuário são ocupados por mulheres.


Vale lembrar que esse espaço, em âmbito de diretoria, só se abriu em 1970, no Porto de São Francisco (EUA), quando Miriam E. Wolff tornou-se a primeira diretora portuária do mundo. Os dados compilados por Antaq e Wista revelaram, também, que há um movimento decrescente de ocupação feminina nos cargos relativos à movimentação de cargas e às operações portuárias. Todo esse contexto certamente é impactado pela reserva de mercado que, passados 30 anos desde a ocorrência do fato social transitório que motivou sua instituição, ainda consta na Lei Federal 12.815/2013.


Ultrapassada, anacrônica, inconstitucional e inconvencional, a reserva de mercado cria barreiras contra o avanço na contratação de mulheres em atividades como estiva, capatazia e conferência. Explica-se: embora as teses do “cadastro aberto de vinculados no Ogmo” e da derrotabilidade (ou exclusividade relativizada) permaneçam vivas, parte da jurisprudência entende que o acesso às vagas de emprego (via CLT) é um monopólio dos trabalhadores portuários avulsos (TPAs) inscritos no Ogmo. Trata-se da inconcebível "exclusividade".


Esse grupo restrito de trabalhadores avulsos do sistema Ogmo é composto quase que totalmente por homens. Nesse contexto, as mulheres ficam duplamente prejudicadas: não trabalham como TPAs e não têm acesso livre às vagas de vinculação empregatícia. Relembre-se, a propósito, que não faz sentido misturar os dois sistemas contratuais, exigindo que para ser empregado portuário alguém precise ser, prévia e obrigatoriamente, avulso (!).


Em termos de ESG (ambiental, social e governança) e de ODS (objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU), a reserva de mercado é antiESG e antiODS, pois não contribui para a equidade de gênero e para o alcance de objetivos como os de números 1, 5, 8 e 10.


Sensível à questão aqui abordada, o ministro Alexandre Ramos, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), pontuou em julgamento recente que o "direito de exclusividade do trabalhador avulso registrado ou cadastrado no Ogmo não pode, quando não exercido, impedir a contratação de trabalhadores por contrato por prazo indeterminado fora do sistema Ogmo, realizando o comando constitucional do pleno emprego, da liberdade de profissão e da livre iniciativa", prestigiando "o acesso de gênero ao trabalho portuário vinculado, dificultado pela preponderância masculina na categoria dos trabalhadores avulsos".


A equidade de gênero no trabalho portuário precisa avançar e, para que isso ocorra, a reserva de mercado pela via da exclusividade não pode ser entendida como um direito absoluto, intocável, dos trabalhadores avulsos inscritos no Ogmo.


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