DNA do trabalho portuário no Brasil

Diversos grupos participaram desse processo histórico com protagonismo

Por: Lucas Rênio  -  04/07/23  -  06:26
  Foto: Carlos Nogueira/AT/Arquivo

Muito se fala sobre a marca indelével dos imigrantes europeus na identidade do trabalho portuário brasileiro. De fato, a história da relação capital-trabalho em nossos portos foi moldada com a relevante participação de trabalhadores que vieram da Europa, especialmente de Portugal e Espanha. Não podemos esquecer, porém, que outros grupos também participaram desse processo histórico com protagonismo.


Os indígenas podem ser considerados os primeiros trabalhadores portuários brasileiros. Na época do descobrimento, eles carregavam toras de pau-brasil, que pesavam cerca de 30 kg, até as embarcações portuguesas. Realizavam, ainda que de modo rudimentar, um trabalho de capatazia destinado ao embarque de carga para exportação por via marítima.


Embora esse registro histórico seja pertinente, o fato é que o trabalho portuário no Brasil acabou não sendo culturalmente influenciado pelos índios. Quanto aos africanos e afrodescentes, porém, a realidade é outra: a exemplo dos imigrantes europeus, os trabalhadores pertencentes a tais grupos deixaram legados na formação do movimento operário e das práticas consuetudinárias nos portos brasileiros.


Pesquisas demonstram que os portos, em virtude da sua dinâmica cosmopolita, do grande fluxo de pessoas e das possibilidades geradas pelo trabalho avulso, abrigavam intensa circulação de escravos e ex-escravos. Nos tempos sombrios e lamentáveis da escravidão, os negros atuavam sob o sistema de ganho e obtinham o jornal dos seus "senhores", que os "alugavam" para serviços de estivadores, arrumadores, carroceiros e outras tarefas análogas.


A partir da abolição da escravatura, esses valores passaram a ser pagos, aí sim com legitimidade, aos próprios negros, agora trabalhadores livres. O espírito de solidariedade em tal época ia além do auxílio físico mútuo na dureza das fainas, comandadas por capatazes (encarregados ou capitães). Havia um movimento de irmandade na aquisição de alforrias e os recursos provenientes do trabalho portuário eram utilizados para comprar a liberdade de diversos indivíduos. Esse contexto se verificou nos portos de Santos, de Salvador e em diversos outros Brasil afora.


Aliás, a magnitude da participação dos negros no Rio de Janeiro fez com que a sua zona portuária ficasse conhecida como Pequena África. Os negros tiveram participação destacada no desenvolvimento do movimento operário. Entidades pioneiras, como a União dos Estivadores e a Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiches de Café, tinham seus quadros associativos formados majoritariamente por negros. Além disso, os primeiros presidentes e diretores também foram negros.


Tratava-se de um movimento operário robusto. Manifestações e greves realizadas na primeira década do século 20 asseguraram conquistas como a prerrogativa de organizar, via sindicato, a contratação das turmas/ternos de carregadores, a garantia de monopólio dos sindicalizados para a realização das fainas etc.


Em 1906, por exemplo, a seguinte notícia foi veiculada pela imprensa após uma greve bem sucedida organizada pela Sociedade de Resistência: "Presentemente, e em razão da greve (ainda não de todo terminada), obtêm os carregadores salários relativamente elevados, gozando de regalias que nunca tiveram... Em cada trapiche ou casa de café coloca a Sociedade um 'representante do trabalho', reconhecido pelo industrial que emprega a 'tropa' e respeitado pelos companheiros que a compõem".


Jamais se esqueça, portanto, que o DNA do trabalho portuário é plural e carregará consigo, para sempre, a contribuição valorosa e indispensável dos negros, africanos e afrodescendentes.


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