
( Foto: Imagem Ilustrativa/Unsplash )
Devo ter cara de quem gosta de papear, pois sempre que entro em um carro de aplicativo ou táxi, o motorista puxa conversa. Ao contrário do que possa parecer, eu preferiria ficar em silêncio mas, invariavelmente, me entrego à conversa. Fico pensando que não é fácil dirigir o dia todo, arriscando-se a pegar pessoas estranhas e possivelmente malucas – como dizia minha mãe, está cheio de doido nesse mundo.
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Como geralmente me levam ou me trazem da sede do jornal, o papo sempre começa com a pergunta: “Você é jornalista?”. Quando respondo que sim, tem-se início, na maioria das vezes, um monólogo. Eu só escuto.
Certa vez a conversa foi com um senhor, muito simpático, que já foi vendedor de enciclopédia. Me contou que criou os filhos “vendendo conhecimento” de porta em porta. Falou com tanto orgulho. Foi contagiante. Fiquei também orgulhosa dele. Disse que os filhos se formaram na faculdade – que um mora no exterior e o outro é professor. Ele, já aposentado, tem que fazer bicos para completar o benefício, que foi encolhendo com o passar dos anos. Falou que gosta, pois a vida toda teve contato com o público. “Jogar dama na praça com os amigos já estaria de bom tamanho, mas aí o dinheiro não daria até o fim do mês”, brincou.
A boa conversa me transportou para a infância. Meu pai adorava uma coleção. Todas aquelas que víamos nas bancas, ele começava (e quase nunca terminava). Quando éramos crianças, ficávamos ansiosas para chegar o novo livrinho dos clássicos infantis que vinha com um disquinho colorido que era colocado na vitrola. Cada semana, uma nova fábula. Ouvíamos até decorar.
Hoje é tão fácil, tudo ao alcance da mão, de um clique. Minhas sobrinhas querem ver um desenho, basta ir no Globoplay, Youtube, Netflix, Disney+... que está tudo lá. E elas sabem fazer tudo isso sozinhas, tamanha facilidade.
Em casa, éramos todos aficcionados por enciclopédias. Meu sonho era ter a Barsa. Mas ela custava o PIB de um pequeno país. A gente se contentava com algumas genéricas.
Certa vez, minha mãe comprou de um vendedor de porta em porta (como meu interlecutor), uma coleção chamada Trópico. Era uma enciclopédia ilustrada de capa dura e colorida. Cada volume tinha um tema. A letra era grande, o que convidava à leitura. Um deles era de biografias de grandes nomes da história. Lembro do dia em que li a página sobre Joana D’Arc. Pronto, já tinha minha heroína. Fiquei fascinada por aquela mulher corajosa e de fim trágico.
Na escola, tivemos que fazer um trabalho sobre alguma personalidade relevante. Claro, escolhi Joana D’Arc. Peguei o volume da enciclopédia, papel almaço (lembram?), folha de sulfite, cola e tesoura. Escrevi sobre ela com empolgação. E, adivinhem... recortei todas as figuras do livro para deixar minha lição de casa bem mais bonita. Voltei da escola toda orgulhosa com minha nota 10. Mostrei para minha mãe e ao invés de parabéns, fui surpreendida com um susto: “Você está doida, menina?!! Recortou a enciclopédia novinha!!! Livro a gente cuida, não estraga!”. Na mesma hora, caiu a ficha (essa expressão também é ultrapassada): eu tinha destruído meu volume preferido.
Meu pai (conciliador ou só sarrista mesmo) deu a solução: “Vamos colar o trabalho dela no lugar da página. Será uma enciclopédia exclusiva”. E assim foi feito. Depois, o tal adendo à coleção Trópico virou conversa do almoço de domingo na casa dos avós e, certamente, divertiu os papos dos meus pais com os amigos.
Às vezes quando a gente está aberta a ouvir e ter uma boa conversa, a viagem pode ser bem mais longa do que poucos quilômetros. Nesse dia, no Uber, me levou lá para o fim dos anos 1970.
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