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Se eu resolvesse fumar, seria debaixo de uma marquise, num fim de tarde mais noite que dia

Por: Cassio Zanatta  -  12/10/23  -  06:21
  Foto: Pixabay

Se eu resolvesse fumar, seria debaixo de uma marquise, num fim de tarde mais noite que dia, espiando a chuva cair. Se fosse comer uma fruta, não seria das difíceis, como melancia ou abacaxi, que exigem faca ou canivete para descascar, a preguiça é muita e a capacidade, pouca.


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Se decidisse viajar, seria numa noite fria e de ônibus, daqueles cata-coiós que vão parando em todas as cidades, numa viagem onde houvesse um café honesto no caminho. Se fosse reclamar, pensaria duas vezes. Ouvir, seria algo triste de Mozart, com uma pausa de dois minutos entre os movimentos. Mozart é sempre alegre e delicado, mas, quando dá para ser triste...


Se o carro passasse oito segundos mais tarde, não seria preciso acionar o seguro. Se eu tivesse acertado o que dizer a ela. Se o cigarro não fizesse tão mal, ele ainda estaria entre nós. Se dez Negronis não dessem em ressaca de querer morrer.


Fosse um super-herói, seria desses que só trabalham de noite, e não teria tanta raiva assim dos bandidos. Para ter uma torradeira, que fosse das desreguladas, que transformam em segundos pão em quase carvão (gosto assim). Uma árvore, das baixas, ao alcance dos bichos – nada de competir em altura com as outras para ver quem recebe primeiro a luz do sol, cansei das disputas.


Uma certeza, seria a de que as coisas são muito improváveis neste mundo. Uma visão, a de Saturno, com anéis, luas e tudo, nascendo atrás das montanhas de Minas: algo ao mesmo tempo lindo e assustador, que pusesse o homem em seu devido lugar. Uma volta no tempo para prosear sem pressa com aqueles dois. Ou para o futuro, para contar ao pessoal que todos estão vivos graças às nossas acertadas providências contra o aquecimento global.


No caso de ser um esquimó, decoraria as paredes do iglu com fotos de São Miguel dos Milagres – um quentinho sempre haveria. Ou de ser um físico renomado, desprezaria não só a resistência do ar, como as vergonhas (tantas) que a gente passa nesta vida.


Se fosse para ser em outro lugar, seria lá, onde o mar nunca estaria tão gelado que nos impedisse de entrar. Onde a gente só tremesse diante de certos olhares, onde o vento deixa o cisco, com abundância de brisa, flor e fruta do conde, e onde os mal-entendidos ainda não tivessem sido inventados.


Para ser outra coisa, que fosse com menos graus de miopia. Fosse uma solução, uma que durasse mais do que uma semana. Algo que eu pudesse comemorar com os desafetos. Fosse um acontecimento repetido, seria o dia em que apresentei Paris a ela, o dia inteiro de caminhada apaixonada, quando, de noite, namoramos com os pés latejando.


Se houvesse tanta certeza, não haveria o se. Sem a dúvida, não existiria nem o talvez. Repare: os acontecimentos prestes a acontecer estão permanentemente na condicional.


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