Pedestres no rasinho

Eu atendi e ela perguntou se era o Henrique falando! Então, além de sonsa, ela acha que eu tenho voz de homem?

Por: Cassio Zanatta  -  09/11/23  -  06:17
  Foto: FreePik

“Você acredita que a sem-vergonha ligou pra casa? Eu atendi e ela perguntou se era o Henrique falando! Então, além de sonsa, ela acha que eu tenho voz de homem? Descarada. Mas ela me paga. E o Henrique também. Um dia eu ainda...”


Passando apressado no meio das pernas da mulher, o siri saído da água correu assustado para mergulhar na sua toca.


“Meu filho. Às vezes nem eu mesmo acredito. Meu filho. Meu sangue. Envolvido com essas coisas. Tanto que eu alertei, tanto que eu briguei. E ele...”.


A bola veio pingando. Ele matou na coxa e tentou devolvê-la num voleio, mas o chute saiu torto e a bola caiu sobre a magrela deitada de bruços tomando sol.


“Estou dizendo: renda fixa. Bolsa é para profissionais. Nós somos a massa de manobra, os que só ouvem dizer, investem quando a festa acabou e daí acabam perdendo dinheiro. Muito melhor é deixar um bom tanto na renda fixa e o resto...”


E o resto do argumento foi abaixo, justamente com o rapaz, depois de pisar no buraco que aqueles moleques tinham cavado na areia.


“Padre? Aquele lá? Padre coisa nenhuma! Todo marombado, corte de cabelo moderno... Imagina que contaram lá na paróquia que a Neusinha... sabe a Neusinha?”


E o sol enfim vencia a grande nuvem, e saiu mais ardido do que nunca, inclemente, como a comemorar a sua superioridade – e aquele branquelo (deve ser estrangeiro) sem ter passado protetor.


“Olha aqui. Não é bacana? É bem o que a gente pensou, não é? Dois quartos, não muito pequeno, boa localização... com piscina, churrasqueira e sauna no térreo. E com supermercado, farmácia, tudo perto. A gente até pode dar o carro de entrada e...”


O vendedor de picolé abafou o diálogo com seu bordão: “Tem de limão, uva e maracujá... chora que o papai dá...”


“Tivemos três chances claras de marcar. Uma com o goleiro caído! Até pênalti a gente desperdiçou. Bobeamos, não matamos o jogo. Aí, num único vacilo, os caras vieram e você sabe: quem não faz...”


Toma. Sorvete, caipirinha, cerveja, água de coco, o que puder para aliviar o calor. “O que você queria? Que eu o entregasse, contasse o que sei? Ele me pediu para jurar! Meu amigo de quantos anos? Vinte e cinco? Trinta? Em nome da nossa amizade, eu não disse nada não, não sou doido. E se ele...”


Então, o teco-teco com a faixa das Casas Bahia buzinou no céu, chamando a atenção e interrompendo as conversas dos pedestres no rasinho.


E a tudo o mar reagia com indiferença, alternando ondas serenas com outras brabas, de vez em quando deixando uma concha na areia. Ou devolvendo um palito de sorvete. Ou tragando o folheto imobiliário que o sujeito do nono parágrafo largou na areia.


Tudo sobre:
Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha editorial e ideológica do Grupo Tribuna. As empresas que formam o Grupo Tribuna não se responsabilizam e nem podem ser responsabilizadas pelos artigos publicados neste espaço.
Ver mais deste colunista
Logo A Tribuna
Newsletter