O passageiro mentiroso

Abre a porta, entra, dá bom dia, fecha a porta com jeito, sem bater forte

Por: Cassio Zanatta  -  14/09/23  -  08:40
E assim roda sem parar, sem destino crível, sem chegar a lugar algum, sabe lá onde os motoristas o deixam entre uma corrida e outra
E assim roda sem parar, sem destino crível, sem chegar a lugar algum, sabe lá onde os motoristas o deixam entre uma corrida e outra   Foto: Imagem ilustrativa/Pixabay

Faz sinal para chamar o táxi ou confere no celular se o carro do aplicativo é aquele mesmo. Abre a porta, entra, dá bom dia, fecha a porta com jeito, sem bater forte (para não irritar o motorista, pois o pessoal hoje em dia anda muito nervoso) e se acomoda.


Daí, puxa prosa com o motorista. Obedece à clássica sequência: falar do tempo, do trânsito que não tem jeito ou mal do governo. Após alguns minutos de pausa para imaginar, ele começa a contar as suas mentiras. A cada viagem, um enredo novo, inventando para si um personagem diferente: ora ele é um deputado pelo Amapá que está de passagem pela cidade; ora é o empresário de cinco cantores sertanejos de sucesso; uma vez, pediu pressa ao motorista porque precisava estar com um ministro “ainda hoje”; em outra, disse ser o filho único da Gal Costa – ensaiou até alguns agudos que não convenceram o motorista.


Conta que já escalou a segunda falange do Dedo de Deus, em Teresópolis, RJ, sem equipamento de proteção nem nada; que jogou na Ponte Preta ao lado de Dicá (chegou a ser cogitado para a seleção); que era ele quem escrevia as letras das músicas para a Rita Lee; inventou que foi vítima de um sequestro rocambolesco e que, ao final, foi trocado pela loira do Tchan.


A um motorista que se disse crente, jurou ser pastor e proferiu ali mesmo uma prece. A outro que defendia a pena de morte, afirmou ser descendente do inventor da guilhotina. O motorista palmeirense ouviu dele ter sido o arquiteto do Allianz Parque; ao motorista metaleiro, perguntou: “Não está me reconhecendo? Eu era backing vocal do Sepultura!”


Prefere viagens curtas, para não se embananar no roteiro e ser desmascarado. Faz pausas dramáticas, olhando pela janela a vida lá fora. Se vê uma placa indicando “República”, diz que dá conselhos ao presidente; se vê um idoso falando sozinho, diz que ele, junto com cientistas noruegueses, está a um passo de descobrir a cura do Alzheimer. Se vê uma agência bancária, pede conselhos ao motorista sobre como ele aplicaria seus R$ 60 milhões sem correr riscos. A cada manhã, estuda o sorriso de escárnio caso o motorista faça cara de quem não está acreditando.


Nunca mais foi visto perto de casa, do trabalho, na padaria, nos lugares onde dava as caras. Consta que embarcou na mentira de tal modo que, agora, ao pegar uma condução ou pedir pelo aplicativo, mente para aonde quer ir, inventa um destino mirabolante – “me leve à piscina do Palácio da Alvorada”; “para a plataforma de lançamento da Nasa”; “para o aeroporto, rápido: sou o médico do Papa e o pontífice está nas últimas!” E assim roda sem parar, sem destino crível, sem chegar a lugar algum, sabe lá onde os motoristas o deixam entre uma corrida e outra. De tanto inventar mentira, leva uma vida que não existe.


Dizem que a mentira tem perna curta. Por isso mesmo, ele já chamou outro carro pelo Uber.


Tudo sobre:
Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha editorial e ideológica do Grupo Tribuna. As empresas que formam o Grupo Tribuna não se responsabilizam e nem podem ser responsabilizadas pelos artigos publicados neste espaço.
Ver mais deste colunista
Logo A Tribuna
Newsletter