O amor não acontece

Para que o amor aconteça, é preciso uma coincidência, uma boa vontade do mundo

Por: Cassio Zanatta  -  26/10/23  -  06:15
  Foto: Unsplash

Por pouco, muito pouco, o amor não acontece. Por um caminhão quebrado que complica o trânsito e causa o desencontro; por conta de uma escada rolante em manutenção; uma mensagem no celular que atrai a atenção e era bobagem. Uma obra na calçada e o amor se desvia. Uma notícia no rádio e o amor se distrai.


Um mau hálito impede o amor. Uma overdose de linguiça que fez brotar cinco espinhas no rosto. Não ir à festa por pura preguiça. Uma conversa que devia ser outra, mas deixa para lá; uma piada de mau gosto e já era.


Para que o amor aconteça, é preciso uma coincidência, uma boa vontade do mundo. Que a cadeia de sucedidos ocorra de maneira precisa, por mais improvável que seja. A bola de gás deve estourar próxima do ouvido da avó, que vai ter uma crise de nervos e exigir que a neta lhe traga água com açúcar, e a moça vai se dar conta de que está faltando açúcar em casa e que, portanto, é preciso pedir um punhado ao vizinho, que naquela hora está recebendo a banda de rock da turma da faculdade e o baixista tem olhos verdes e, bem, você entendeu. Ou a garota que abre a porta do armário e dá com aquele inseto que jamais deve ser nomeado, e sai para comprar inseticida porque o dela estava no fim, para então chamar a atenção do simpático vendedor da loja que naquele instante repunha as latas de inseticida na prateleira.


Ou, para sermos mais claros: se nas casas em questão houvesse açúcar ou inseticida suficientes, ou se em vez de no armário o inseto que jamais deve ser nomeado estivesse passeando pelo ralo do banheiro, ou se o baixista fosse ruim de doer e tivesse sido merecidamente expulso da banda, por exemplo, o amor não teria vez.


Na reunião chata que você daria tudo para não ir, estará a pessoa que vai mudar sua vida. Na sala de espera do consultório do dentista uma outra pontada vai nascer. Aquela correspondência que chegou por engano na sua casa e você vai devolver no apartamento certo pode ser o começo. Você desce no metrô na estação errada e dá de cara com quem? Perceba que o amor adora acontecer revertendo as possibilidades.


Portanto, deixemos sempre os dentes bem escovados, evitemos o excesso de carne de porco, vamos deixar as bolas de gás estourarem em paz, sejamos mais pacientes com os insetos e bichos em geral. Estejamos prontos para o amor, ele pode surgir da maneira mais estranha. Ou até mesmo se recusar a acontecer, caso encontre uma vida muito em ordem, as coisas no lugar exato, tudo sob controle em demasia.


Por pouco, quase nada, o amor não acontece. Um espirro, um cochilo, os óculos esquecidos em casa. Tanta coisa para atrapalhar, impedir, confundir, afastar e fazê-lo desistir.


Mas o improvável é cheio de ideias. Bem mais interessantes.


Tudo sobre:
Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha editorial e ideológica do Grupo Tribuna. As empresas que formam o Grupo Tribuna não se responsabilizam e nem podem ser responsabilizadas pelos artigos publicados neste espaço.
Ver mais deste colunista
Logo A Tribuna
Newsletter