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Cassio Zanatta

Mude de palavras

Já era um sonho estranho, caótico, daqueles em que Francis Bacon ia buscar inspiração

Cassio Zanatta

13 de março de 2025 às 06:44
Mude de palavras

( Foto: Gerada por IA )

(Gerada por IA)

(Gerada por IA)

Já era um sonho estranho, caótico, daqueles em que Francis Bacon ia buscar inspiração. Foi quando uma senhora desconhecida se aproximou e me entregou um bilhete. Como o inconsciente é curioso de dar dó, abri o papelzinho dobrado e ali estava escrito: “Mude de palavras”. Quando voltei os olhos, a mulher não estava mais lá.

Acordei daquele jeito que a gente fica, cinco minutos olhando para o teto, intrigado. Mude de palavras. Talvez tivesse sido uma maneira gentil de eu ser avisado que ando repetindo algumas.

Se o conselho tivesse sido para mudar as palavras, muitas bem que mereciam. A gente antipatiza com algumas, vai explicar. Claraboia, por exemplo: acho as claraboias tão bonitas, aquela luz suave que se abre no telhado, mas o nome é de doer. Talvez trocasse claraboia por plínia. Ou vazaluz. Outra que não faz jus à beleza do objeto: árvore. Para ela, eu reservaria a palavra ‘primor’. Para o que a gente conhece por primor, eu pensaria em outra coisa.

Outra ideia (hoje estou impossível): inventar um nome para aqueles tropeços engraçados ou ridículos, quando a gente se estatela na calçada. Seriam os bitarolas.

E vem cá: arco-íris não merecia coisa melhor, não?

Já outras são perfeitas em sua designação: prepotente. Que outra palavra definiria tão bem uma pessoa pretensiosa, arrogante? Como explicar aquele requebrado dos quadris melhor que ‘remelexo’? Mais preciso que ‘sussurro’? Idem espirro, assunção, impacto, asco, patético, estrondo.

Tem aquelas cujo nome já explica a função: beija-flor, para-raios, vaga-lume. Mas por que diabos guardanapo?
Mas não: o recado era para que eu mudasse de palavras. Pode ser que algumas estejam mesmo cansadas de mim. Mas o que eu posso fazer? Sei que repetir palavras num texto não é bom, muito menos no mesmo parágrafo. Mas e se eu quero chamar o mar de mar, ué? Trocar por oceano, que é tão maior e imponente (mas morre de inveja do mar porque este tem maré, ondas e siris, enquanto oceano só existe nos mapas e provas de geografia)? Acho uma bobagem procurar num sinônimo outro jeito de dizer o que a gente quer dizer. Quem sabe trocar lua cheia por plenilúnio não fosse tão grave, se essa palavra só servisse mesmo para letra de bolero.

Mas, afinal, que palavras tenho repetido tanto assim? Janela, espuma, tico-tico, caipira, nuvem, abraço, empadinha? É, pode ser. Os leitores devem saber melhor do que eu, cansados dos assuntos que se repetem e repetem e repetem.

Uma palavra eu admito que repito: sonho. Um tema mais que recorrente, eu diria insistente. Muitas crônicas minhas apelam a ele para acontecer. Daí que, pelo visto, o próprio veio me alertar. E se eu insistir em fazê-lo personagem, haverá vingança? Que pesadelos ele prepararia? Daqueles doídos, humilhantes, que expulsam de vez qualquer tentativa de voltar a dormir?

De qualquer maneira, já vou avisando: se aquela senhora desconhecida me aparecer de novo, eu saio correndo, deixo a mulher feito louca falando sozinha com o papelzinho na mão, quero nem saber. Talvez até salte, bata os braços e saia voando pela janela (aí: janela de novo, não falei?).

Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha editorial e ideológica do Grupo Tribuna. As empresas que formam o Grupo Tribuna não se responsabilizam e nem podem ser responsabilizadas pelos artigos publicados neste espaço.
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