Existe a vontade. E existe o desejo. Vontade a gente tem: de comer pastel, de ir a Morungaba, descer a marreta no despertador, fugir da reunião para ir ao cinema. Mas na vontade somos os agentes: está claro quem está no comando. A vontade é serena, não tira o sono de ninguém, a pessoa não rasga a roupa no vagão do metrô tomada pela vontade, muito menos vira um serial killer.
Já o desejo, ele que tem a gente. O desejo nos controla, nos humilha, nos faz babar na festa e sapatear no velório. Esconde nosso lado monstro e faz crescer os caninos. O desejo lateja, exige ser saciado. E, quanto mais cresce, mais sujeito a descontroles.
Toda vontade quer ser desejo quando crescer. Quando pequena, inocente, ela se satisfaz com alguns mimos, feriados e empadinhas. Aos poucos, vai se estranhando, ganhando uma personalidade anárquica. É quando ela se transforma em desejo. Os homens inventaram leis e religiões para impor algum limite, mas há uma linha que, se atravessada, lascou-se: o ermitão vira lobisomem; o penitente, terrorista; o astronauta, asteroide; e por aí vai - e de tanto ir acaba por se perder.
Para onde vai a vontade que não se realiza? Para a gaveta de meias, para a geladeira, entre o requeijão e o rabanete que sobrou do almoço; no muxoxo, sufocada por um simples chuvisco. A vontade não passa de um miado, um dar de ombros, suspiro que não acorda ninguém na cama ao lado.
Já o desejo, se não realizado, a gente guarda (ou tenta guardar) em lugares perigosos: no rasgo da colcha, na segunda garrafa de vermute, no sacrifício que faz sangrar. Buscamos algo que o detenha, mas é o oposto que costuma acontecer. Choramos de desejo, latimos de desejo; por desejo viramos santos, atiradores de elite ou francamente canalhas. Alguns até criam carpas ou minhocas para domá-lo. O grito que ouvimos de madrugada, vindo da janela de um apartamento às escuras, é de algum pobre tomado pelo desejo. As mulheres sofrem igual, mas extravasam menos - e é aí que mora o perigo.
O desejo existe para nos lembrar de que, afinal, somos animais como as lesmas e os batráquios. Que a tal inteligência superior sucumbe lamentável diante de um cio, de um olhar insistente, por mais promessas tenham sido feitas a autoridades leigas e eclesiásticas. A vontade é de largar esta crônica e ir caminhar sem destino. Deixar de ser possuído por esse desejo besta e meio sem sentido de escrever e escrever e escrever. Que antes fosse só vontade.
No fundo, os dois sentimentos se invejam: o desejo bem queria ser menos aflito, olhar os poentes e dormir as sestas; a vontade, ser mais impetuosa, roubar o beijo, sair pelo mundo com uma mochila e uma promessa quase impossível de cumprir.
Que os dois disputem entre si, se xinguem, se engalfinhem e me deixem em paz. A tarde está clara, e há pouca gente na rua. Um ou outro cachorro. A conta quitada no bolso. Um gari assobia.
De repente, reconheço um perfume. Surge no canto da boca uma baba suspeita.