Mulheres de casas abandonadas

A repercussão do podcast que tomou conta das redes sociais nas últimas semanas

Por: Arminda Augusto  -  21/07/22  -  10:16
Mulher vivia em uma casa aparentemente abandonada em São Paulo
Mulher vivia em uma casa aparentemente abandonada em São Paulo   Foto: Reprodução/TV Globo

Entender este texto tem um pré-requisito: leia ao menos uma matéria das tantas que saíram sobre um dos podcasts mais tocantes e impressionantes que já circularam pelas plataformas de streaming: A Mulher da Casa Abandonada.


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Dividida em apenas sete episódios, a série narra a incrível história de um casal de brasileiros que se mudou para os Estados Unidos no final dos anos 70 e manteve, por quase 20 anos, uma mulher preta e analfabeta vivendo em condições semelhantes à escravidão. Cada episódio é um pedaço da história, contada com detalhes que fazem a alma doer, a mente viajar e as sinapses se confundirem no tempo. Mas não, não é uma ficção. É uma história real. Tão real que quase podemos sentir o cheiro da casa, a cor das paredes e os diálogos que durante anos foram travados naquela casa rica em uma cidade do estado de Maryland.


O jornalista Chico Felitte foi brilhante! Conseguiu, em sete semanas, levantar várias reflexões para além do caso chocante e revoltante que ele narra ali, em episódios que duram quase uma hora. E voam, fazendo o ouvinte perder a noção do tempo.


A mim, dois pensamentos se fixaram no topo da mente e não descolam mais. O primeiro, que a história dos anos 70 é a história dos anos 80, dos anos 90, dos anos dois mil. Está recente o caso da idosa de 89 anos que foi resgatada em abril deste ano (sim, abril deste ano de 2022) após longos e dolorosos 50 anos de escravidão. O bairro? Gonzaga, aqui bem perto de nós, na nossa Santos tão santista.


A proximidade do caso me faz pensar que no meu prédio, na minha rua, no meu bairro pode ter alguém escravizando alguém, alguém subjugando alguém, alguém vivendo no porão e comendo sobras de alimentos que iriam para o lixo. O pensamento dói.


A segunda sensação que me vem é ainda mais forte. Desde quando era pequena ouço minha mãe contar que chegou de Portugal com os patrões e havia a promessa de que voltaria pra terrinha depois de um ano. Instalaram-se todos em uma cidade do interior. Minha mãe, semi-analfabeta naquela época, filha em uma família com oito irmãos, sabia nada sobre a vida. Na fazenda, fazia de tudo sem trégua, sem horário para descanso, sem férias ou décimo terceiro. Do salário era descontado o valor da passagem do navio que a trouxe (!). Sobrava quase nada. Não voltou depois de um ano. Nem depois de dez. Foi salva pelo casamento com meu pai.


O podcast do Chico Felitte fez explodir o número de denúncias ao Ministério Público do Trabalho de situações semelhantes. A maioria envolvendo mulheres feitas escravas. A mulher do Gonzaga é preta. A mulher do podcast também. Branca, minha mãe foi exceção.


A sociedade precisará de muitos anos ainda para depurar seus valores, banir a escravidão moderna, enxergar-se como formada por homens e mulheres iguais. A boa notícia é que a vigilância hoje é maior, os canais de denúncia são mais fáceis, há entidades olhando pra isso. Se não for pela crença de que esse é um comportamento desumano e condenável, que os defensores da escravidão moderna tenham, ao menos, medo de podcasts, das redes sociais e do estrago que elas sabem fazer na vida de quem mantém no porão seus semelhantes. Em troca de um teto e um prato de comida.


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