Lembranças que a chuva levou

Se a enchente levou tudo, que as lembranças na memória, as músicas e os cheiros ocupem o seu lugar

Por: Arminda Augusto  -  21/02/23  -  19:20
 Casas no Bairro Areião, em Guarujá, sofreram os efeitos da enchente provocada pelas chuvas
Casas no Bairro Areião, em Guarujá, sofreram os efeitos da enchente provocada pelas chuvas   Foto: Reprodução

A senhora de 76 anos aparece na imagem sendo resgatada por voluntários, que se aventuram sobre o que sobrou daquele trecho de serra próximo à Rio-Santos. Sua casa, a da filha e da sobrinha ficavam numa área de risco, é verdade, mas "segura e protegida" segundo disse à repórter da TV. "Eu vivia aqui há mais de 60 anos e isso nunca aconteceu com a minha família".


O depoimento entra pela sala de estar da minha casa e penso: ainda bem que ela escapou, assim como a filha casada e os netos, e também a sobrinha que morava a poucos metros dali. Mas a frase final da breve entrevista faz todo o contexto parecer estranho. "Agora, vou ter que começar tudo de novo". Começar tudo de novo pressupõe comprar uma geladeira, um fogão, os estofados da sala, a cama e o guarda-roupa. Pressupõe, também, reservar dinheiro para as panelas, pratos, lençois, roupas e produtos de higiene pessoal. Pressupõe, por fim, dar entrada em documentos e cartões do banco. Começar tudo de novo aos 76 anos representa um desafio tão grande que é fácil imaginar que não dará tempo de juntar tudo que tinha, e que foi conquistado nessas quase oito décadas de existência.


A idade da franzina senhora me traz um pensamento perturbador: a enchente levou para sempre aquelas coisas que dinheiro nenhum vai trazer de volta, e que representam uma parte boa do não-desapego. Fotos da infância dos filhos, cartas de amor trocadas com o namorado, objetos que estão na família desde os mais distantes antepassados, cadernos de receita que foram da mãe e da avó, presentes simples feitos na escola pelo Dia das Mães, porta-retrato com foto amarelada sobre a estante, a imagem de Nossa Senhora trazida de Aparecida pela vizinha quando foi pagar uma promessa, o caminho de mesa, o crochê na mesinha de centro, flâmula que marcou o centenário do time do coração....


Bobagens? Supérfluos quando o importante é a vida? Sem dúvida, a gratidão por estar viva e bem prevalece sobre qualquer outra prioridade. Mas confesso que, depois da casa montada e em lugar seguro, depois da dispensa refeita e as camas com lençol, depois do banho tomado e a comida no fogão, eu precisaria criar outros símbolos, nomear outros itens, me abraçar em outras lembranças e pequenas coisas para sentir que ali, naquele novo lugar, um pedaço do meu passado também está.


São coisas simples e sem valor material, mas que servem de acolhida num dia de saudades, de alegria num dia de confraternização, de resgate num dia de tristeza.


Se a enchente levou tudo e nada há para resgatar, que as lembranças na memória, as músicas e os cheiros ocupem o seu lugar de honra. Mais que isso: que o relato oral, a roda de conversa e até mesmo a escrita registrem a passagem do tempo nesses 76 anos de vida. Há de surgir alguém para escrever as histórias de quem perdeu num dia de enchente todas as lembranças materiais que a vida havia juntado.


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