Em livro, advogada santista aborda a violência doméstica contra crianças e adolescentes

Ana Lúcia Cury é especialista em Direito da Família e Sucessões e escolheu essa abordagem para seu texto no livro

Por: Arminda Augusto  -  15/05/21  -  15:47
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Tema amplo, mas geralmente associado à relação entre marido e mulher, a violência doméstica também transforma crianças e adolescentes em vítimas. Nos últimos meses, episódios envolvendo agressão e morte de crianças pequenas têm sido frequentes, como os dos meninos Henry e Gael. Advogada especializada em Direito da Família e Sucessões, a santista Ana Lúcia Moure Simão Cury escolheu essa abordagem para seu texto no livro ‘Violência Doméstica’, uma coletânea de artigos que acaba de ser lançada pela Imperium Editora. Maria Odete Duque Bertasi foi a coordenadora da obra e o prefácio é de Luiz Flávio Borges D´Urso.


Em um livro que aborda a violência doméstica, por que você escolheu a questão da criança e do adolescente?


O senso comum entende muito bem que violência doméstica é contra mulher, mas existe também a violência doméstica contra a criança e o adolescente. Eu quis trazer essa situação para o centro do debate e propor a seguinte reflexão: essa violência também acontece e, muitas vezes, fica ali entre quatro paredes. As partes silenciam. A mãe tem medo de se separar porque depende financeiramente. Na pandemia, houve um aumento expressivo desses casos.


Quando se fala em violência contra crianças e adolescentes, não estamos falando apenas de agressão física, certo?


Há várias formas. Ela pode ser praticada por pai e mãe ou só por um deles. É o que eu chamo de crianças órfãs de pais vivos.


O abandono é uma forma de violência também? Quem o pratica pode perder o poder familiar (pátrio poder)?


Quando falamos em abandono, falamos de uma questão mais ampla, no sentido material e afetivo. O abandono afetivo gera outro tipo de penalidade: indenização por dano moral, perda afetiva. Nesse sentido, não podemos falar em destituição, não.


Temos visto vários casos de crianças pequenas vítimas de violência por parte de pais e padrastos, até com desfecho trágico. Como são pequenas, nem sempre reportam o que está ocorrendo. Como se consegue provar esse tipo de caso? São situações em que o agressor pode perder o poder familiar, não?


Há as provas testemunhais, como no caso do Henry, em que a babá sabia da situação. Há, também, o ambiente escolar, com a psicóloga e a pedagoga. Dentro do processo judicial, tem uma equipe multidisciplinar que visita todos os ambientes frequentados pela criança. Hoje, o estudo psicológico da criança usa até o desenho que ela faz, de onde se extrai o que pode estar vivendo.


Já houve casos assim?


Tivemos um caso em que a criança, submetida à análise psicológica, falou de situações em que foi possível identificar que ela era vítima de violência sexual. São relatos com figuração recreativa, mas que transmitem situações domésticas. Quando ela reporta isso, o quebra-cabeça vai sendo montado. A criança fala por manifestações que nem sempre são verbais. É entre quatro paredes que as coisas acontecem.


No caso do menino Henry, essas manifestações também deviam estar presentes, não?


Com certeza. Veja só: ele chorava na hora de voltar para a casa da mãe. Relutava em sair da casa do pai. O corpo estava falando e já fazia tempo.


Você, que atua na área do Direito Familiar, quais são os casos mais comuns de violência doméstica contra crianças e adolescentes?


Violência física, abandono material, abandono afetivo, violência sexual. A Justiça entende que a prova é difícil, mas os indícios todos, unidos, demonstram as situações.


Esses indícios são suficientes para decretar a perda do poder familiar?


Por essas características, sim, mas o processo é longo e muito criterioso, com várias etapas e análises. Se os pais são separados, por exemplo, a Justiça pode decretar o impedimento à visita do possível agressor até ter certeza de que está mesmo ocorrendo a violência.


Uma vez perdido o direito familiar, é possível revertê-lo na Justiça?


Pode acontecer, mas também é um processo longo. O rigor empregado para tirar o direito é o mesmo para devolver. Não é simples nem rápido.


A vontade da criança ou do adolescente é considerada?


Sim, com certeza. Mas você sabe que, muitas vezes, a criança que é abandonada, por exemplo, se sente um pouco culpada por isso, como se ela tivesse provocado essa situação. Então, quando o pai ou a mãe volta, querendo reconquistá-la, ela está cheia de perdão pra dar. Ela quer a reaproximação, a volta.


Mesmo que o pai perca o pátrio poder, ele continua obrigado a pagar a pensão alimentar?


Sim, com certeza.


A violência contra crianças e adolescentes acontece em todas as camadas sociais, não?


Em todas, em famílias ricas e pobres, assim como a violência contra a mulher.


Nossa legislação está bem estruturada para lidar com esses casos ou há falhas?


O Brasil está muito bem servido, sim. O Estatuto da Criança e do Adolescente é exemplar, foi um avanço.


Quem não é da família, mas identifica sinais de que uma criança pode estar sendo vítima de violência, a quem deve recorrer?


Diretamente ao Ministério Público, que vai determinar as medidas necessárias em juizo. O que falta ao Judiciário, porém, é um aparelhamento maior. Muitas vezes, o processo começa quando a criança é pequena e termina quando ela já é um adulto. Falta aparelhamento, sim. Temos poucos profissionais para fazer laudos multidisciplinares, o que retarda o término do processo. É um trabalho muito bom, mas o aparelhamento é insuficiente.


Atuar no Direito de Família exige algo mais que apenas dominar as leis, não?


É verdade. Em Direito de Família, dois e dois nem sempre são quatro. É preciso ter muita sensibilidade e empatia. Olha, às vezes, as pessoas estranham algumas medidas adotadas pela Justiça em Direito de Família, como a guarda compartilhada em casas alternadas. As crianças se adaptam a tudo. Ao que elas não se adaptam é assistir ou serem vítimas de agressão. Isso é o que não pode.


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