'Retrogamers’ enfrentam desafios na arte de colecionar jogos antigos no litoral de SP

Manutenção, peças e alta do dólar são barreiras que precisam ser ultrapassadas por quem ama jogos e consoles 'vintage'

Por: Isabela Solé e Kauany Silva*  -  06/06/22  -  11:00
Atualizado em 07/06/22 - 14:46
Exposição de videogames de várias épocas: atração para o 'jogador raiz'
Exposição de videogames de várias épocas: atração para o 'jogador raiz'   Foto: David Rayel/Arquivo pessoal

Colecionar videogames antigos, o chamado retrogaming,está em alta, mas a vida desses gamers não é só alegria. Também há desafios na vida para quem escolheu esse hobby. Profissionais qualificados para o conserto de consoles, peças fora de linha, dólar mais caro, além da concorrência de uma comunidade cada vez maior de adeptos são fatores que complicam a vida dos apaixonados pelos jogos retrô.


“Muitos técnicos evitam fazer a manutenção desses aparelhos porque não dá lucro. No tempo que eu gasto consertando um videogame antigo para ganhar R$ 100, ganho 500 consertando um console mais moderno”, explica David Rayel, colecionador, técnico e dono de uma loja de videogames em Mongaguá. Ele afirma que profissionais dispostos a realizar esse tipo de serviço são raros no mercado.


“Leva muito tempo. Se eu for cobrar pelo trabalho que dá, o cliente vai pagar mais do que o valor que gastou para comprar o console e isso não vale a pena para ele. Assim como não vale a pena para mim cobrar tão pouco por tanto serviço”, complementa Rayel.


O servidor público Carlos Henrique Leme, de 38 anos, coleciona jogos há quase 10 anos e passa por essa situação. Quando precisa fazer algum reparo nos consoles, envia para um amigo da Capital. “Costuma não ser um conserto barato, porque muitas vezes são peças que não se acha mais, então ele tem que importar. Uma vez levei meu Super Nintendo. Ele fez a troca de todos os capacitores antigos por novos. Meu Nintendo vai durar por mais um tempão, mas gastei quase o valor que paguei no videogame para isso”.


Fora a manutenção realizada por técnicos, como limpeza interna e troca de peças, também há cuidados minuciosos que os colecionadores devem tomar. “Tem sempre que limpar os cartuchos e as fitas, passar álcool isopropílico. Tem que fazer uma boa higiene de seis em seis meses, pelo menos, para tirar pelo e poeira”, explica o colecionador e streamer Cláudio Corrêa, de 33 anos.


Outro profissional que faz manutenção de eletrônicos há quase 30 anos e dá dicas de como conservar bem os itens de coleção é Fábio Batista Oliveira, 47 anos. Ele é gerente de uma loja de games e de uma hamburgueria com a temática geek em Santos. “É preciso se preocupar sempre com a oxidação causada pela maresia, que gera o ferrugem. Tem que deixar bem guardado e colocar sílica gel sempre que possível, ligar com frequência para esquentar um pouco, a cada dois anos trocar a pasta térmica e fazer lubrificação de cooler”.


Ele, que é licenciado para venda de consoles de diversas marcas, também explica que os cuidados no colecionismo são tantos que devem começar antes mesmo de se iniciar uma coleção. “Hoje você pode comprar um videogame num box e o vendedor te falar que é novo, é original, e te dá três meses de garantia. Aí você vem comprar aqui com a gente e nós te damos um ano de garantia. Daí você se pergunta 'por que se é o mesmo videogame?' Porque hoje o pirata ninguém mais chama de pirata, é o ‘segunda linha’, o ‘alternativo’. Mas um produto original de qualidade é diferente, a durabilidade é maior”.


Escolher vendedores confiáveis também é um dos conselhos que Corrêa dá para quem quer iniciar uma coleção. “Precisa procurar bem onde comprar, porque hoje tem muito golpe por aí”. Além disso, também orienta que os iniciantes tenham paciência neste momento, pois a alta do dólar dificulta a compra por um preço acessível. “Se você quer investir mesmo, se tem como despender uma parte do seu salário para isso, eu diria para ter paciência para tentar negociar os preços”.


Preços esses que estão cada vez mais altos. Leme explica que a alta do dólar prejudicou quem comprava de sites internacionais, onde estão a maior parte dos itens raros. "Quando descobri os sites gringos eu comprei muito, muito, muito. Acho que o pessoal da Receita Federal até me marcou. Toda semana chegavam umas cinco caixas na minha casa, porque nessa época o dólar estava bem baixo. Foi em 2018 que comecei a tirar o pé do acelerador porque estava ficando muito caro”.


Também ao longo do tempo a arte de colecionar retrogames acabou se tornando moda. Colecionistas começaram a divulgar seus itens e feiras de troca em canais no Youtube, o que contribuiu para que a comunidade adepta ao colecionismo de jogos antigos aumentasse exponencialmente nos últimos anos. "Tem gente que viu um negócio nisso. Começaram a especular os valores dos jogos, a inflar os preços, fazendo várias trocas e vendas. Isso fez os preços dos jogos e consoles subirem muito. As pessoas começaram a ficar malucas. Tinham um console em casa jogado, uma coisa super comum, e começaram a achar que tinham uma relíquia guardada, que deveria valer milhares de reais. Aí começou a subir, subir”.


A elevação dos preços, tanto em razão do dólar quanto ao inflamento da comunidade, fez com que Leme e Corrêa diminuíssem a frequência com que adquiriam jogos, assim como o fato de ambos estarem reformando seus apartamentos, coincidentemente. Se fosse para dar início às suas coleções agora, talvez os dois pensassem duas vezes antes de comprar o primeiro item. "Atualmente, com o dólar do jeito que está e com essa situação financeira do Brasil, é bem complicado você querer montar uma coleção”, disse Corrêa. "É o pior momento para começar a colecionar. Eu não queria falar isso, mas infelizmente é a verdade", Leme desabafa.


História com os games


A paixão por elementos do passado e a vontade de relembrar a infância motivam milhares de pessoas ao redor do mundo a colecionar itens raros que possuem grande valor, tanto monetário quanto afetivo. Na Baixada Santista não é diferente. A cultura nerd, em peso na região, abriga diversos colecionadores com diferentes paixões no ramo, como os 'retrogamers'. Investindo grande quantia na compra e manutenção desses itens, os gamers aumentam cada vez mais suas coleções, apesar dos desafios.


Leme, por exemplo, joga desde que se entende por gente. O servidor público conta que a paixão foi herdada do pai, que tinha a eletrônica como hobby. O amor por esse universo surgiu justamente quando o viu consertando um Telejogo, no início dos anos 80. Foi o primeiro contato do menino com o que dedicaria muito recursos ao longo da vida.


Desde 2012, Leme vem adquirindo itens para sua coleção, que chega a 20 consoles e mais de 300 jogos. Ele começou por aqueles que o lembravam da infância, que sempre sentiu vontade de jogar, mas que nunca teve oportunidade, e os que jogava, mas que não tinha condições de comprar. "A gente alugava, era rato de locadora. Vivia lá".


O colecionador lembra que o primeiro console que teve foi um Atari, comprado pelo pai. E conta que, na mesma época, a ânsia para possuir os games assim que eram lançados era tão grande que ele vendia os que já tinha para adquirir os novos, e é por isso que não possui muitos itens do período de infância e adolescência.


Atualmente, a coleção possui dois terços de todos os itens que ele planeja conquistar, meta que vai demorar um pouco para ser alcançada agora que está reformando o apartamento onde mora. "Infelizmente os games caíram na minha lista de prioridades".


Coincidentemente, essa é a mesma situação de Corrêa, de 33 anos. O colecionador, que também é auxiliar administrativo e streamer, precisou pausar a expansão da coleção de mais de 20 consoles e 500 jogos agora que sua casa está em obras.


Ele, que coleciona desde 2008, conta que o primeiro contato que teve com os games foi ainda na primeira infância, quando o pai comprava os ‘clones’ de consoles originais sempre que possível, em razão do preço. “O primeiro que eu me lembro de ter ganhado foi um Dynavision, entre 1993 e 1994. Aí em 1995 ganhei um Megadrive de uma amiga da minha tia”.


Não é atoa que um dos itens preferidos de Corrêa é justamente um Megadrive, seguido pelos jogos Tomb Raider, que não tem muito valor monetário, mas que vale muito afetivamente, e Resident Evil, que tanto o valor afetivo quanto o monetário são consideravelmente expressivos: 5 mil é o preço que o streamer pagou em um dos jogos mais caros da coleção dessa última franquia. “É um investimento”.


E Corrêa não brinca quando fala que sua poupança está “com os controles guardadinha”. Os planos dele para sua coleção no futuro já estão bem definidos. “Bateu 60 anos eu não vou ficar com essas coisas entulhadas em casa. Eu tenho para usar agora. Vou vender tudo, pegar a grana e viajar o mundo”.


A ideia de se desfazer da coleção é algo que passou até mesmo pela cabeça de Rayel com a chegada da pandemia do coronavírus. "Num momento desse a gente pensa bastante, fica meio receoso, meio preocupado. Já teve algumas vezes que pensei em desistir, mas por enquanto estou firme e forte". Com uma coleção de mais de 220 consoles, conquistados ao longo de apenas 8 anos, Rayel guarda histórias das diversas vezes em que realizou a exposição 'Meu primeiro videogame', onde exibe os consoles.


"O último evento que fiz que teve uma grande repercussão foi o Praia Games 2019, em Praia Grande. Teve chamada na Globo ao vivo; dei entrevista; no período da tarde passou de novo na Globo; até o prefeito de Praia Grande foi lá visitar e conversar comigo". "Teve também a Pixel Show, em São Paulo, que é uma coisa mais voltada para artes, então quando o pessoal viu minha coleção, cheia de games antigos que eles nunca tinham visto, ficaram bem animados. Foi muito divertido".


Rayel é apaixonado pelo universo dos jogos desde que tinha 8 anos. Ele lembra que aos 12 fugia da escola para jogar videogame; que aos 16 conseguiu comprar o primeiro Playstation e enfim, aos 22, começou a trabalhar na área, em um fliperama. "Nessa época eu comecei a comprar uns games, mas nada com intenção de colecionar. Comecei a comprar com esse fim quando já estava casado, aí virei acumulador mesmo", brinca.


Quem também trabalha duro numa coleção há mais de 20 anos é Fábio Oliveira. Ele conta que os 92 retrogames ficam expostos na loja que gerencia, assim como há um mini museu com itens antigos na hamburgueria onde atua. "É uma coleção que não foi feita de uma hora pra outra, é bem antiga porque não dá para você conseguir tudo de uma vez, é muito difícil".


Ele também descobriu a paixão pelos jogos quando era criança, mas na época seus pais não tinham condições de presenteá-lo com um console. "Tive meu primeiro videogame com 14 anos. Eu era office boy e comprei um Mastersystem, equivalente a quatro salários mínimos da época. Meu padrasto foi na Mesbla e comprou para mim, lembro como se fosse hoje. Foi muito importante, uma realização".


A partir daquele momento, Oliveira percebeu que queria trabalhar com isso e, alguns anos depois, realizou esse sonho. "Em 1993 entrei para o ramo e ao longo do tempo isso só foi aumentando. Hoje trabalhamos com toda a indústria do videogame; temos a loja, que também presta assistência técnica; e a hamburgueria, que também é buffet e cafeteria gamer, oferecendo experiências com games desde a década de 70 até os mais modernos".


Atualmente, Oliveira e seus sócios também representam o Brasil como embaixadores em feiras de jogos nos mais diversos países, além de realizarem eventos de games em vários estados brasileiros, como lançamentos oficiais de jogos e campeonatos. "Hoje a indústria do videogame é muito forte, movimenta a economia e está presente em vários ramos no processo de 'gamificação'. Na minha época game era coisa de vagabundo, de quem não tinha o que fazer, e hoje isso mudou", finaliza.


Reportagem feita como parte do projeto Laboratório de Notícias A Tribuna - UniSantos sob supervisão do professor Eduardo Cavalcanti e do diretor de Conteúdo do Grupo Tribuna, Alexandre Lopes.


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