Projetos em Santos valorizam a cultura e a história afro-brasileiras

Iniciativas envolvendo diversos setores colocam em foco o empoderamento negro

Por: Ana Beatriz Manso e Mariana Pinho*  -  15/07/23  -  17:42
Exposição de fotos de Dayse Pacífico no projeto Africanitude 013: arte como fator de mudança
Exposição de fotos de Dayse Pacífico no projeto Africanitude 013: arte como fator de mudança   Foto: Arquivo pessoal/Dayse Pacífico

A busca pelo empoderamento negro tem motivado a criação e desenvolvimento de vários projetos, em Santos, voltados à valorização da cultura afro-brasileira. São artistas locais, escritores, artesãos e coletivos cada vez mais voltados à realização de exposições, feiras e empreendimentos que reforçam a identidade cultural de seus criadores.


“Aprendemos quando nascemos que somos invisíveis, que o nosso cabelo, cor e traços são um problema, que não estamos no padrão de beleza adequado. Crescemos em uma estrutura social que nos oprime. Suportar e superar isso é exaustivo”, desabafa a fotógrafa Dayse Pacífico, criadora do projeto Africanitude 013, que alia arte e empoderamento negro por meio de ensaios fotográficos.


O Africanitude 013, que existe desde 2020, é para Dayse uma conquista pessoal. Ela explica que a visibilidade do projeto significa o respeito e a valorização de quem, ao longo da história, foi alvo de preconceito e injustiça social.


A fotógrafa diz que, atualmente, não vê o Africanitude 013 só como uma exposição de fotos, mas como missão de vida. “Quero que outras pessoas também possam ter a oportunidade de mudar seu destino pela educação, arte e cultura”. Ela destaca que essa consciência vem de família. Seu pai é mestre de capoeira e a mãe, professora de crianças autistas.


Início
Dayse Pacífico conta que criou a primeira exposição, que foi virtual, como homenagem ao Dia da Consciência Negra, em 2020. “Era cercada por mulheres pretas lindas e potentes. Coloquei vários nomes em um papel. Conversei com a minha assistente e decidimos que seria uma homenagem a esse dia”.


Rainha Africana, como foi chamada a exposição que deu origem ao projeto, aconteceu em meio à pandemia e destacou a beleza das mulheres pretas. A fotógrafa afirma que a maior dificuldade foi na hora de realizar os ensaios, feitos em sua casa. “Tive dificuldade para encontrar todos os perfis que gostaria. Não consegui achar uma negra trans e outra com vitiligo”.


Reconhecimento
A exposição rendeu destaque para Dayse. Uma das fotos foi premiada. Luara Martins, estrela do ensaio, ficou nacionalmente conhecida por dançar no palco com a cantora Iza, na edição de 2019 do Rock in Rio.


Dayse Pacífico conta que chamou o projeto de Africanitude por conta de os ensaios girarem em torno da cultura africana. Já o 013, veio por querer uma marca de nascença da cidade de Santos. Além disso, a fotógrafa relacionou o número com a quantidade de modelos nos ensaios.


Em edições seguintes, foram tratados temas como os laços afetivos afrocentrados e também as mulheres. Dayse recebeu um convite da Comissão de Igualdade Racial da OAB de Santos para participar da 3ª Semana Tereza de Benguela, com o evento 'Legado e Ancestralidade. Alzira Rufino - A Casa de Cultura da Mulher Negra - Quilombo Urbano Santista', que terá duração de uma semana, começando no dia 1º de agosto, na OAB de Santos.


A espiritualidade ancestral preta será o tema da terceira exposição de Dayse Pacífico,Raízes da Fé. Ela diz que estuda o assunto, porque foi criada em religiões diferentes das de matriz africana, e não quer cometer erros na exposição por falta de conhecimento. “Ganhar consciência da própria ancestralidade gera reconexão e traz paz de espírito. Já estou apaixonada pelo desconhecido”, comenta. A expectativa da fotógrafa é que tudo esteja pronto até meados de de outubro.


No Coletivo AfroTu, ações voltadas ao afroempreendedorismo feminino
No Coletivo AfroTu, ações voltadas ao afroempreendedorismo feminino   Foto: Divulgação

Resistência
“Cada vez mais, temos orgulho de tudo o que nos foi escondido e apagado”, afirma a artesã Luciana da Cruz. Ela é engajada no empoderamento negro e conta que idealizou projetos voltados para a valorização da identidade afro-brasileira, como a Feira Afro Santos Criativa, que gerou o Coletivo AfroTu, e a FeirAfro.


A Feira Afro Santos Criativa foi concebida como um encontro cultural e de negócios com afroempreendedores locais, como ato de resistência. Luciana diz que nela acontecem manifestações artísticas como roda de samba, desfiles de tendências da moda afro e apresentações de capoeira e maracatu.


A partir da realização da Afro Santos Criativa, Luciana idealizou o Coletivo AfroTu, que reúne artesãos, artistas e designers, com o objetivo de fortalecer ações coletivas, sociais, artísticas e culturais, além da representatividade afro-brasileira. Ela diz que percebeu as dificuldades dos colegas pretos nos negócios e articulou a busca de parcerias para o fortalecimento dos afroempreendedores da Baixada Santista.


A artesã menciona que o coletivo tem como principais objetivos o acesso a investimentos sociais e a qualificação em gestão de negócios e novas tecnologias, que são pontos de carência para o crescimento de empreendimentos criados por pessoas pretas. Ela acrescenta que a diretoria é formada por mulheres empreendedoras que, além de gerirem seus negócios, participam da organização das atividades propostas pelo AfroTu.


Sobre a origem do nome do coletivo, Luciana explica que ele se refere aos afrodescendentes e à cultura própria de Santos. Segundo ela, uma das realizações do AfroTu foi a criação do curso Afroempreender, em parceria com o Sebrae e a Prefeitura de Santos.


Empreendedorismo
Após ficar desempregada, em 2016, Luciana conta que começou a utilizar o artesanato como fonte de renda. “Sou artesã desde menina. O meu hobby virou negócio”. Ela criou a Lumimus, uma empresa de moda sustentável que reaproveita partes de roupas jeans que seriam descartadas, com a utilização de crochê e ‘decoupage’ (uma técnica artesanal baseada em recortes) para a criação de bolsas, acessórios e peças decorativas. Ela conta que também usa a cartonagem, que utiliza papelão para a confecção dos itens.


Augusta França:
Augusta França:   Foto: Arquivo pessoal/Augusta França

Resgate
Já a guia de turismo Augusta França, de 64 anos, realiza roteiros com caminhadas por lugares de Santos que, durante o período de escravidão, foram quilombos. Para ela, durante toda a história do Brasil, a representação da cultura preta foi deixada de lado. “A cidade é rica em conteúdo histórico, mas a história da população negra é deixada para trás”, afirma.


Augusta diz que conteúdo histórico também é uma forma de combater o racismo. “O TurMochilando Afro Culturas é sobre isso. É minha missão. Quero gerar visibilidade sobre a história do povo preto”.


O projeto foi idealizado depois que ela participou de passeios semelhantes em São Paulo. “Fiquei fascinada e pensei que seria possível realizar aqui, também. A ideia me deixou muito animada, já que a Cidade tem muita história para ser contada”.


Para a guia de turismo, Santos guarda muito informação do período de escravidão no Brasil, mas ela acredita que a parte da cultura negra não é valorizada. “Não se tem interesse em promover o conhecimento desse conteúdo, por isso vi a possibilidade dessas histórias começarem a ganhar reconhecimento”.


O objetivo do TurMochilando, segundo ela, é valorizar esse lado da história. “As pessoas começam a olhar a cidade de outra perspectiva, observam o valor histórico da nossa ancestralidade”, comenta. Augusta diz que está criando outros roteiros, o que demanda esforço. “Por trás de um roteiro, é necessário fazer muita pesquisa, ir atrás de muita informação”.


Durante o passeio, que dura em média três horas e meia, são apresentadas narrativas históricas sobre os quilombos do Pai Felipe, do Jabaquara e do Santos Garrafão, fatos e personagens que se relacionam à história da contribuição da população negra para a construção da Santos atual.


Bartolomeu de Souza: literatura é
Bartolomeu de Souza: literatura é   Foto: Arquivo pessoal/Bartolomeu Pereira de Souza

Legado
Quem também vê a cultura como meio para dar visibilidade a causas sociais é o escritor e ativista Bartolomeu Pereira de Souza. “Quando você estuda a própria história, fica mais forte, se torna um questionador”, afirma.


Souza é ex-portuário, e após completar 70 anos, decidiu embarcar na carreira literária. “Escrevi meu primeiro livro em 2018. Foi mais uma necessidade de me expressar. Tem uma hora que você não consegue dar uma resposta àquilo que te aflige. Escrever é uma válvula de escape. Com isso, aproveito para reunir questões raciais”.


O escritor já lançou dois livros, Memória na Pele, que conta sua história, trajetória e militância, e Santos, Cidade Libertária, obra que relata questões raciais na Cidade. Para ele, é importante a presença de histórias negras em seus livros. “Pela literatura, eu posso representar o meu povo. Precisamos mostrar que somos referência”, diz.


Aos 74 anos, ele sente que “militar é obrigação e honra”. Para seus ancestrais, explica Bartolomeu Souza, “era difícil passar o bastão, mas eles conseguiram”. Agora, ele sente que precisa dialogar com os jovens para que o legado continue, e a luta e a história não morram.


*Reportagem feita como parte do projeto Laboratório de Notícias A Tribuna - UniSantos sob supervisão do professor Eduardo Cavalcanti e do diretor de Conteúdo do Grupo Tribuna, Alexandre Lopes.


Logo A Tribuna
Newsletter