Indígenas do litoral de SP veem Ensino Superior como ferramenta de preservação cultural

Representantes das tribos também consideram ampliação dos estudos como meio pra quebrar preconceitos

Por: Gustavo Bertoldi*  -  19/04/23  -  09:19
Ubiratã Gomes, no lançamento de seu livro 'Urutagwa': incentivo ao estudo vem de família
Ubiratã Gomes, no lançamento de seu livro 'Urutagwa': incentivo ao estudo vem de família   Foto: Ubiratão Gomes/Arquivo pessoal

Dois dos principais representantes dos indígenas de Peruíbe, no litoral de São Paulo, buscam, por meio do estudo fora das aldeias, a preservação cultural nativa e a quebra de preconceitos. Ubiratã Gomes e Lilian Securella encontraram no Ensino Superior uma oportunidade para dar sequência aos processos de educação e defesa da causa indígena.


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Cacique da aldeia Bananal, em Peruíbe, Ubiratã se formou em Pedagogia em 2008, pela Universidade de São Paulo (USP), juntamente com mais 80 indígenas de cinco etnias situadas no Estado de São Paulo. A ação foi promovida por um curso intercultural, em parceria com a Secretaria Estadual de Educação.


Seguindo os passos do irmão mais velho, Ubirajara, professor indígena formado ainda na década de 1980, o cacique conta que a família sempre foi incentivada a estudar. “Nosso pai via a educação como uma forma de continuarmos nossa luta em defesa da causa indígena”, afirma. Ubiratã Gomes também se dedica à literatura. Acaba de lançar um livro, ‘Urutagwa: O Guerreiro que Virou Pássaro’.


Lilian Securella, que faz parte da aldeia Piaçaguera, também em Peruíbe, conta que desde cedo se interessou pelos estudos na graduação. “Comecei fazendo Letras, porque quando começou o projeto de Educação Escolar Indígena, a maioria do pessoal das escolas passou a cursar Pedagogia”, explica.

“Quando já estava em sala de aula, surgiu a oportunidade de assumir a direção da escola da aldeia, e para isso, precisaria fazer Pedagogia. Por já estar em sala de aula, achei interessante e acabei cursando”.


Formada em 2010 pela UniBR, em São Vicente, Lilian saía da aldeia e caminhava 30 minutos a pé, todos os dias, para conseguir pegar o ônibus com destino à faculdade. Sem conseguir auxílio de bolsa escolar, ela pagava a faculdade com a remuneração obtida com as aulas na aldeia. “É um desafio para a gente. As pessoas às vezes têm uma faculdade do lado de casa, e acabam não se interessando”, lamenta.


Formada em Pedagogia, Lilian Securella destaca as dificuldades que enfrentou para estudar:
Formada em Pedagogia, Lilian Securella destaca as dificuldades que enfrentou para estudar:   Foto: Lilian Securella/Arquivo pessoal

Lilian Securella e Ubiratã Gomes ressaltam a importância do acesso ao ensino superior para indígenas como forma de construir um pensamento, mostrando para os alunos que eles podem ser o que quiserem, sem deixar a cultura de lado. Ambos também defendem que a troca cultural possibilitada pelas universidades ajuda na quebra de estereótipos.


"Por sermos indígenas, temos que provar o tempo inteiro que somos capazes. Estudamos na aldeia da nossa maneira e de acordo com nossa cultura, às vezes sem camisa, descalços, mas precisamos preparar os demais para o que vão encontrar lá fora, para não terem nem a própria cultura e nem eles mesmos menosprezados”, afirma Lilian.


Além disso, ambos defendem o acesso ao ensino superior como um caminho para a preservação da cultura indígena, tendo em vista que a formação nas mais variadas áreas possibilita que a comunidade seja auxiliada pelos próprios membros, ou por alguém que conheça a realidade das aldeias.

“Precisamos de advogado, médicos e enfermeiros que saibam lidar com a nossa realidade”, diz Lilian Securella. “Temos rotatividade de médicos que não se adaptam à realidade das aldeias. Algumas delas podem ter sala para o atendimento, mas em outras, o médico tem de atender dentro de um carro. É necessário passar para os jovens que eles terão de ocupar esses lugares”.


Sobre a questão do acesso dos indígenas às universidades, ela diz que houve um aumento significativo do número de indígenas cursando o ensino superior. Mas também ressalta que, por lei, o Estado tem obrigado a oferecer ingresso ao ensino superior nas tribos.


Esse avanço recente também é explicado pelo professor de História Social Leandro Alonso. Ele conta que, ao ter o interesse sobre a causa indígena despertado após orientar um TCC, passou a estudar os significados culturais, os costumes e a identificação dessa população.


Alonso confirma que agora há maior aproximação das universidades com essas comunidades. Além de projetos para formação de professores nas aldeias, as instituições estão se preocupando em ter maior número de ingresso de indígenas nos cursos de graduação.


O professor considera essa aproximação positiva. Para ele, não há descaracterização cultural com o ingresso no ensino superior, ressaltando que a principal característica é a relação estabelecida com a própria cultura dos estudantes. “Para eles, a cultura própria não é uma coisa passível de se transformar e se perder. Eles carregam consigo muito dela”, explica.


Entretanto, assim como os dois líderes indígenas, Leandro Alonso destaca as dificuldades de acesso ao ensino superior. “Há uma grande dificuldade para eles chegarem até a universidade, assim como aos meios de comunicação. Hoje, a maioria das universidades adere a plataformas virtuais para os estudantes acessarem de onde estão, mas nesse caso, dificulta a troca intercultural”, conclui.


*Reportagem feita como parte do projeto Laboratório de Notícias A Tribuna - UniSantos sob supervisão do professor Eduardo Cavalcanti e do diretor de Conteúdo do Grupo Tribuna, Alexandre Lopes.


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