Juiz decreta recuperação judicial de empresa suspeita de promover pirâmide

Golpe seria cometido sob a aparência de investimento em criptomoedas e lesou cerca 2 mil pessoas; empresa da Capital já teve escritório em luxuoso edifício corporativo de Santos

Por: Eduardo Velozo Fuccia  -  10/07/20  -  12:13
Falência ronda empresa acusada de lesar 1.897 pessoas em pirâmide
Falência ronda empresa acusada de lesar 1.897 pessoas em pirâmide   Foto: Divulgação

Investigada pela Polícia Civil e pelo Ministério Público (MP) por estelionato e lavagem de dinheiro por suposto golpe da pirâmide disfarçado de investimento em criptomoedas, a empresa BWA Brasil Tecnologia Digital requereu a sua recuperação judicial. Na quarta-feira (8), o juiz Marcelo Barbosa Sacramone, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, deferiu o pedido, mediante determinadas condições.


Com sede na Capital, a BWA já teve escritório em luxuoso edifício corporativa de Santos antes de ruir e deixar centenas de lesados. Ao pedir a sua recuperação judicial, ela elaborou relação de 1.897 credores, que juntos sofreram prejuízos de R$ 295.441.226,88. Entre as vítimas estão uma analista administrativa e um “motorista de diretoria”. Funcionários da empresa, eles investiram R$ 6.156,65 e R$ 22.790,60, respectivamente.


Se fosse dividido o número de credores pelo valor total devido pela BWA, teria-se a média de R$ 155.741,28 para cada investimento. Porém, na realidade, os valores aplicados variam bastante. Oitenta e três clientes fazem parte do grupo que investiu quantia igual ou superior a R$ 500 mil. Entre as pessoas jurídicas, uma empresa de exportação e importação de Barueri (SP) amarga o maior prejuízo: R$ 14,1 milhões.


O segundo lugar é ocupado por um posto de combustíveis de Santos. A BWA reconhece dever para este cliente a quantia de R$ 12,3 milhões. As pessoas físicas com maiores prejuízos são dois homens. Coincidentemente, ambos residem na Ponta da Praia, em Santos. Eles aplicaram R$ 5 milhões e R$ 2,5 milhões na BWA. Até um criminalista, que acreditou realizar operação segura, figura no rol de credores. Ele investiu R$ 601 mil.


Administrador nomeado


“Estando presentes, ao menos em um exame formal, os requisitos legais, defiro o processamento da recuperação judicial da BWA Brasil Tecnologia Digital”, decidiu Sacramone. Em decorrência da decisão, o magistrado nomeou um administrador judicial e determinou a suspensão das ações e execuções contra a empresa, bem como o curso dos respectivos prazos prescricionais.


Segundo o juiz, cabe ao administrador judicial apurar eventual conduta culposa (derivada de negligência, imperícia ou imprudência) ou dolosa (intencional) dos sócios da BWA que possa ter contribuído para a crise; averiguar possível retirada de quem foi sócio da pessoa jurídica, e acompanhar movimentações financeiras e negócios da empresa para proporcionar aos seus credores “precisas informações”.


Outra obrigação do administrador é a de apresentar relatórios mensais sobre as atividades da BWA. Tais documentos devem ser juntados ao processo “para acesso mais fácil dos credores”. Para isso, a empresa deve fornecer ao administrador todos os documentos que forem solicitados, entre os quais extratos de suas contas bancárias e comprovantes de recolhimento de impostos e encargos sociais.


“Remédio ineficaz”


Advogado empresarial que representa dezenas de vítimas, Maurício Cury aponta irregularidades no rol de credores e valores encaminhado pela BWA à Justiça, alertando os lesados em geral. “Pela análise inicial que fizemos, o quadro geral de credores contém graves equívocos. Os valores estão subestimados e alguns credores nem ao menos constam do quadro geral”.


De acordo com Cury, o prazo de 15 dias para a habilitação dos créditos e/ou impugnação do quadro geral de credores é curto. “Portanto, os lesados têm que procurar advogados especializados e de sua confiança para ingresso imediato na recuperação judicial”. Ainda conforme ele, a recuperação judicial pedida pela BWA é “remédio jurídico ineficaz, que pode se tornar mais amargo que a própria doença”.


A justificativa de Cury para não acreditar na eficácia da recuperação judicial da BWA está fundamentada em resposta que dá a pergunta feita por ele mesmo: “Quem vai confiar seus recursos, hoje em dia, aos gestores da BWA ? Apenas empresas ativas têm chance de se recuperar judicialmente”. Segundo o advogado, “a empresa, até onde os credores têm conhecimento, não desenvolve qualquer atividade”.


Advogado Maurício Guimarães Cury palestrou sobre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais
Advogado Maurício Guimarães Cury palestrou sobre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais   Foto: Vanessa Rodrigues/AT

“Processo transparente”


CEO da Quist Investimentos, assessoria financeira da recuperação judicial, Douglas Duek encara com otimismo a medida requerida pela BWA e deferida pela 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. “A empresa poderá se reestruturar e pagar todos de forma organizada, dentro da lei. Faremos um processo transparente com a participação ativa dos credores para gerar a melhor solução para todos”.


Duek explica que a BWA está com “recursos presos” em outra empresa, que também entrou com pedido de recuperação judicial. Ela é o Grupo Bitcoin Banco (GBB), no qual a BWA canalizava valores investidos pelos clientes. “Porém, no final do primeiro semestre de 2019, o GBB suspendeu as operações devido a problemas operacionais e, posteriormente, pediu sua recuperação judicial”, finaliza o CEO da assessoria financeira.


Decisão de juiz não atinge apurações criminais na Polícia Civil e no MP


Os efeitos da recuperação judicial na esfera cível (suspensão das ações e execuções) não refletem na área criminal. Inquérito policial instaurado pela 1ª Delegacia de Investigações Criminais de Santos (antiga DIG) e procedimento de investigação criminal (PIC) aberto pelo Grupo de Atuação e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do MP, continuam em trâmite.


De acordo com o delegado Luiz Ricardo de Lara Dias Júnior, inquérito foi instaurado para apurar suposto estelionato cometido pelos sócios da BWA, sem prejuízo de se investigar o crime de lavagem de dinheiro e outros que vierem à tona. Inicialmente, o procedimento policial tinha cerca de 20 vítimas. Esse número triplicou após A Tribuna publicar matéria sobre a suposta pirâmide na edição de 6 de fevereiro deste ano.


“No ano passado, houve uma alteração da legislação e o estelionato passou a ser crime de ação penal pública condicionada. Ou seja, é necessário que a vítima represente (manifeste expressamente a sua vontade) para o Estado poder agir e adotar as medidas legais”, informa Lara. Desse modo, o delegado justifica as atuais 60 vítimas, número bem aquém dos 1.897 credores relacionados pela própria BWA.


Prisão de criminoso foi confirmada pelo delegado Luis Ricardo de Lara Dias Jr
Prisão de criminoso foi confirmada pelo delegado Luis Ricardo de Lara Dias Jr   Foto: Nirley Sena/ AT

O indício de golpe decorre da promessa de remunerar aplicações em criptomoedas com juros superiores aos de outros investimentos. Conforme uma vítima, os juros variavam de 3 a 3,5% ao mês para as aplicações mais recentes, chegando a 5% nas mais antigas. “Não havia prazo de carência para o resgate total dos valores e a operação parecia segura, porque não se pedia para trazermos novos investidores como as tradicionais pirâmides”.


Conforme a mesma fonte, a captação de clientes se dava por meio de uma rede de “consultores”, geralmente, do mesmo círculo social e/ou profissional dos potenciais investidores. Desse modo, quem eventualmente aplicou recursos nas criptomoedas negociadas pela BWA confiou por conhecer os corretores. Estes, por sua vez, ganhavam um percentual sobre os aportes injetados pelas vítimas.


Paraíso fiscal


Representante de diversas vítimas, o criminalista Matheus Cury requereu a abertura de um PIC ao Gaeco – Núcleo Santos. “Os investigados supostamente utilizaram o dinheiro aplicado pelas vítimas nas aquisições de bens móveis e imóveis no nome das pessoas físicas. Também adquiriram empresas, visando ocultar os valores adquiridos pela vantagem indevida”.


A investigação do grupo do MP apura os delitos de “estelionato em série”, lavagem de dinheiro e organização criminosa, acrescenta Matheus. Segundo o advogado, uma empresa “coligada” à BWA possui sede nas Bahamas, paraíso fiscal no Caribe, “o que também pode evidenciar o crime de evasão de divisas, caso se mantenha valores no exterior sem a devida comunicação ao Banco Central”.


Com capital de R$ 1 milhão, a BWA tem Jéssica da Silva Farias como sócia-administradora, enquanto Marcos Aranha e Roberto Willens Ribeiro são os demais sócios. Os três assinam a relação de credores e valores encaminhada à Justiça com o pedido de recuperação judicial. No entanto, Paulo Roberto Ramos Bilibio, companheiro de Jéssica, é apontado como quem comanda de fato a sociedade.


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