'Vivemos contexto em que a ciência oferece respostas e é negada pelo cidadão', analisa pesquisador

O professor Ricardo Fabrino Mendonça analisa a importância da aproximação entre a ciência e a sociedade

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  17/01/21  -  19:45
Professor Ricardo Fabrino Mendonça
Professor Ricardo Fabrino Mendonça   Foto: Reprodução/Twitter

Do smartphone que conecta o mundo às vacinas que protegem contra inimigos invisíveis, a ciência está na vida de cada cidadão. Mas o contrário nem sempre acontece. Por isso, o Centro de Democracia Deliberativa e Governança Global, da Universidade de Canberra, na Austrália, está promovendo a Assembleia Global em Edição Genética, para que cidadãos comuns tenham voz em questões científicas de ponta. O professor Ricardo Fabrino Mendonça, que também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, é um dos organizadores do projeto no Brasil. Para ele, essa aproximação entre ciência e sociedade é crucial para o resgate da compreensão da importância do conhecimento científico na vida humana. Segundo Mendonça, há uma crise socioeconômica em curso, em que o papel da ciência é descaracterizado e o conhecimento técnico acaba nivelado ao patamar das opiniões pessoais.


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O projeto nasceu de alguma reflexão sobre o papel da ciência? Qual a origem?


Tem um nascimento pouco usual. A Genepool Productions, que se dedica a documentários de divulgação científica, tinha a ideia de uma produção que abordasse o papel que cidadãos comuns podem ter ao debater assuntos complexos. A ideia chegou ao Centro de Democracia Deliberativa e Governança Global, que articulou uma rede de pesquisadores pelo mundo. A ideia de trabalhar com o cidadão para discutir implicações morais e políticas de questões científicas não é nova. O que é novo é a organização de uma assembleia transnacional.


O projeto vai se encerrar na assembleia ou se imagina torná-lo permanente, como mediação entre ciência e sociedade?


Uma assembleia desse tipo não possui prerrogativa de construções legais, que são de escopo nacional, mas tem possibilidade de balizar diretrizes internacionais, a partir de articulações que podem vir a influenciar decisões nacionais. Um dos problemas da edição genética é justamente esse: você tem uma rede regulatória bastante imprecisa e variável. Isso traz uma série de riscos, inclusive de que alguns países sejam mobilizados para fazer experiências que não seriam aceitas em outros contextos. Ser transnacional não é uma mera questão de escala, mas por tratar de problemas que não podem ser resolvidos nacionalmente.


Como está sendo organizada a assembleia?


O projeto tinha um outro cronograma, iria acontecer ao longo de 2020 e 2021. Com a pandemia, as assembleias nacionais ocorrem virtualmente. Há previsão de realizar assembleias nacionais em todos os continentes e, no início de 2022, de forma presencial, uma assembleia global, em Atenas, com entre 100 e 110 cidadãos, representantes desses fóruns nacionais. Cada assembleia nacional deve ter em torno de 24 participantes, escolhidos a partir de uma amostra aleatória e estratificada. O sorteio será feito por uma empresa que trabalha com pesquisa de opinião. A gente quer representatividade de mulheres, racial, assegurando uma pluralidade. Embora, precisa ficar muito claro, não é numericamente possível ter a representatividade completa da sociedade brasileira. São cidadãos sem relação com o tema, não serão movimentos sociais, advogados, ativistas. Eles participam de um projeto informativo, com materiais sobre a temática em uma dimensão específica da edição genética. No Brasil, será a utilização da edição genética na produção de alimentos, no agronegócio.


Você crê que exista um distanciamento entre ciência e sociedade e que esse projeto pode auxiliar em uma reaproximação?


O projeto acredita na necessidade de diálogo entre cientistas e cidadãos, para benefício tanto de uns quanto de outros. A necessidade desse diálogo se dá, inclusive, para produzir conhecimento mais qualificado. Você tem cidadãos entendendo que tudo é uma questão de opinião, que a minha opinião vale tanto quanto a do outro sobre aquela questão. Isso gera um impasse. Pois reconhecer a relevância do cidadão não quer dizer produzir uma equivalência entre opiniões e conhecimento científico. Muitas vezes, em nome da democratização do conhecimento, gera-se um tipo de falsa equivalência entre opinião e conhecimento, que é extremamente perigosa.


Esses movimentos colocam em risco a própria democracia?


Talvez o ponto mais importante do projeto seja sobre esse risco à democracia, que se coloca de maneira clara, com o surgimento de problemas complexos, que demandam um conhecimento muito especializado. Isso leva-se ao risco de se sugerir colocar a democracia em suspenso. Hoje, há muitos cientistas preocupados com as mudanças climáticas e começam a surgir coisas como ‘olha, não conseguimos resolver isso democraticamente’.


Mas, geralmente, quem costuma flertar com autoritarismo são os que negam a ciência, não?


A democracia encontra dilemas em várias direções. Existem cientistas tão preocupados com as consequências de algumas mudanças para a sobrevivência da Humanidade que a democracia tem um valor menor e abririam mão dela. Nosso argumento caminha em direção oposta. Por serem complexos é que os problemas precisam do diálogo entre cientista e cidadão. Se em todo problema complexo abrirmos mão do cidadão, cairemos em um totalitarismo tecnocrático.


Uma coisa é a descrença na ciência. Outra, é surgir algo como o terraplanismo em pleno século 21, cuja elaboração e argumentação muitas vezes bebem na própria fonte da ciência. Como isso é possível?


São vários fatores, mas um dos mais importantes tem a ver com o questionamento de todas as formas de hierarquia. Há uma ideia de equivalência de visões de mundo, de formas de saber. Ainda que múltiplos saberes sejam importantes para a manutenção da democracia, é preciso conhecer que esses saberes têm lugares distintos e contribuições diferentes ao processo, tanto de produção do conhecimento, quanto da decisão política. Parece haver hoje um solapamento dessas diferenças, como se toda forma de conhecimento fosse questão de opinião. A questão da Terra plana caminha nesse sentido, tem a ver com o processo da própria sociedade, da forma como se valida e se atribui status. Há uma série de critérios para validação do conhecimento científico, mas se começam a criar espaços de fala científicos à margem dessa validação, a partir de critérios de visibilidade e endosso. São likes, compartilhamentos...


As redes sociais têm um papel preponderante nessa crise?


Não atribuiria a culpa do processo, se é que existe culpa, às redes. Elas são parte de um contexto social que leva à contestação da hierarquia, à equivalência de preferências e a uma atribuição de status e validade do discurso com base em endossos públicos. Com esses três elementos, temos tanto cientistas preocupados em ocupar essa cena pública e produzir outros conteúdos quanto essa produção da equivalência, com narrativas minimamente coerentes, mas sem processo de validação científica, frequentemente ancoradas em teorias conspiratórias, recebendo endosso e visibilidade.


O senhor considera que a ciência, ao apartar-se da religião, tenha deixado de lado a necessidade do ser humano de transcendência e, por isso, não o satisfaz na sua plenitude?


A ciência, na modernidade, propõe um deslocamento de formas mágicas para a construção de outras formas explicativas. Nesse processo, há até uma certa mistificação da ciência. Essa mistificação é que começa a ser questionada. Veja, o questionamento do saber científico é importante para a própria ciência, mas com bases científicas. Contudo, ela vem sendo questionada na sua própria existência como discurso. A religião nunca saiu de cena, nem pôde sair de cena, exatamente por ocupar essa dimensão central na vida da sociedade. Então há essa tensão permanente entre uma série de discursos, o científico, o político, de laicização, e o religioso, em uma conta que nunca fecha completamente.


Esse panorama de redução da ciência é perigoso? É possível que nos leve a involuir, especialmente em conquistas consideradas fundamentais, como os direitos humanos?


Isso tem nos levado a uma crise epistêmica (das bases do conhecimento) em que, ao se questionar o conhecimento em si, joga-se fora esse conhecimento e se tomam decisões baseadas em opiniões e visões momentâneas, sem que haja o escrutínio público.


Há muitos governos, incluindo o brasileiro, que têm esse tipo de postura. Ou seja, há um questionamento opinativo institucionalizado em muitas nações. Qual o perigo disso?


Perfeito. Há uma série de lideranças políticas, de movimentos, formas de mobilização fortes, com um discurso de abrir mão da ciência. ‘Não escute os cientistas’. Isso não é questionamento, é imposição, não um debate público qualificado, que pavimenta a possibilidade da construção legítima de decisões democráticas.


A criação desse fórum ao debate científico tem a ver com essa crise, então?


Tudo a ver. Vivemos um contexto em que a ciência oferece respostas e é negada pelo cidadão. Afora isso, há problemas de uma complexidade que requerem conhecimento pensado como muito além do cidadão comum, mas que, após a tomada de decisões, irá afetar a vida desse cidadão. Se você começa a reconfigurar a forma de produção de alimentos, as formas de prevenção de saúde ou produção de órgãos para transplante, por exemplo, há implicações diretas na vida e na estruturação da sociedade em que esse sujeito vive.


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