Pesquisador em saúde pública fala sobre pandemia no Brasil: 'Total desleixo da população'

Jesem Orellana é pesquisador da Fiocruz Amazônia e viu o colapso do sistema de saúde em Manaus

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  27/02/21  -  01:04
Pesquisador em Saúde Pública, Jesem Orellana, atua na Fiocruz Amazônia
Pesquisador em Saúde Pública, Jesem Orellana, atua na Fiocruz Amazônia   Foto: Arquivo Pessoal

A nova variante do coronavírus, surgida em Manaus, já está amplamente espalhada pelo País, crê o pesquisador em Saúde Pública Jesem Orellana. “O que falta é estrutura de vigilância laboratorial para fazer a contagem aumentar exponencialmente”. Segundo o Ministério da Saúde, há 184 casos confirmados da chamada variante brasileira.


Lotado há 15 anos no Instituto Leônidas e Maria Deane, a Fiocruz Amazônia, Orellana viu de perto o colapso do sistema de saúde em Manaus, que atingiu o nível dramático de pacientes morrerem por asfixia, pela falta de oxigênio. Nesta entrevista, o pesquisador fala do descaso com que a pandemia foi encarada no Amazonas, tanto pela população quanto pelo Poder Público, do negacionismo brasileiro e suas consequências desastrosas, e que, a exemplo da gripe suína, a covid-19 veio para ficar. “Todo ano vamos ter que fabricar e atualizar as vacinas”.


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Havia indícios de que o sistema de saúde entraria em colapso em Manaus ou a segunda onda, com a variante do vírus, foi decisiva para a crise?


Quando surgiu a nova variante, nós voltávamos a uma segunda onda, é preciso deixar claro. Os primeiros sinais de agravamento são de outubro. Se você compara o total de mortes de julho, que encerra a primeira onda, em outubro, além de ter a interrupção de queda no número de casos, a gente registrou o dobro de mortes. Daí pra frente dá uma estabilizada, mas em patamares altos de mortalidade. Talvez com o relaxamento generalizado da população, as pessoas andando sem máscara em shoppings, festas clandestinas, uma agitação absurda, as eleições em dois turnos... não se pode culpar a nova variante por esse recrudescimento, nós estamos falando de um vírus, não de uma ave migratória, que se move pelo instinto, o vírus precisa da interação humana para se propagar.


É possível se afirmar então que ocorreu o contrário: justamente pelo descaso da população é que a nova variante surgiu?


Exatamente. Há uma série de fatores que envolvem dois elementos fundamentais: negligência sanitária, porque o número de testes PCR no estado do Amazonas é pífio. Aliás, a Defensoria do estado, provocada por nós, entrou com uma representação na Justiça pedindo o aumento da testagem em massa, no final de 2020, quando começa a circular a nova variante. O Ministério Público foi contrário ao pedido, alegando que a epidemia estava sob controle. O pior: no parecer, dizia que o problema de Manaus nunca foi a subnotificação, mas o excesso de casos. Que, na verdade, esse monte de óbitos e casos era qualquer coisa, menos covid-19, que os prefeitos e governadores fazem isso para ganhar dinheiro do Governo Federal. Esse é o primeiro ponto. O segundo é que você tem essa movimentação grande de pessoas, 1,1 milhão, no primeiro e segundo turnos das eleições. Se a gente entrar no site do TRE, você vai ver que Manaus teve um dos menores índices de abstenção entre as capitais. Esse descaso total da população e do Poder Público – que acreditava ainda em imunidade de rebanho, que Manaus seria a primeira cidade do mundo a vencer o vírus – o resto da história a gente sabe, um desastre, que culmina com a morte de dezenas, talvez centenas de pacientes, asfixiados, sem oxigênio.


Quando você fala sobre relaxamento da população, refere-se também ao uso de máscara ou álcool em gel ou apenas a aglomerações?


Não temos números exatos, mas o que vimos é um total desleixo da população. Qualquer lugar que você vá em Manaus, restaurante, shopping, de maneira geral a população não se preocupa com uso de máscara e em evitar aglomerações. Tem muita influência, talvez, da forma como a população do Amazonas interpreta a epidemia, muito influenciada, acredito eu, por algumas lideranças políticas e do mundo empresarial, que passam a ideia de que é uma gripezinha, de que isso vai acabar, de que é primeiro a economia, depois a saúde das pessoas. Esse conjunto explica porque as pessoas acreditam em tratamento precoce, elas acham até hoje, por incrível que pareça, que podem ser curadas pela cloroquina.


O que já se sabe sobre essa nova variante oriunda de Manaus? Ela irá se espalhar e pode representar uma nova epidemia?


Há estudos com participação da Fiocruz Amazônia, mostrando que o perfil filogenético dessa variante, em relação à comum, sofreu algumas mutações na estrutura associadas à transmissibilidade. Em outras palavras, tem maior capacidade de penetrar as células humanas. Assim, ela vai, obviamente, causar mais adoecimento e morte. Não tem a ver com letalidade, é outra história. Em tese, essa variante atinge uma quantidade maior de indivíduos abaixo de 50 anos, entre as 18 variantes que temos catalogadas no estado do Amazonas até agora. E também há a hipótese da maior letalidade dessa variante, mas essa é a hipótese mais frágil, que ainda precisa de confirmação. Quanto a ela se espalhar, é questão de tempo.


Atinge mais as pessoas abaixo de 50 anos, incluindo crianças? Esse público parecia imune à infecção.


Incluindo crianças, em geral com 5, 10, 12 anos. Inclusive, os hospitais infantis de Manaus estão todos lotados. Nem naquele pico violento que tivemos em Manaus em abril e maio tivemos tanto.


Você acha que o Brasil aprendeu alguma coisa com Manaus para melhor tentar conter o avanço dos vírus?


A gente tem aprendido muitas coisas em relação à transmissão, dos impactos na saúde das pessoas. Mas é uma situação difícil, pois quando o brasileiro acha que vai começar a superar a pandemia, com a vacinação, e que 2020 vai ficar pra trás, ele recebe uma segunda onda até mais violenta do que a primeira. Cria-se um ambiente muito difícil pra transformar o aprendizado em ações de controle efetivo da pandemia. Uma coisa é você saber e querer mudar as coisas. Outra são as condições ambientais, econômicas, sociais, que permitam fazer isso. Hoje, seria muito difícil implantar um lockdown rigoroso, em boa parte do Brasil. Primeiro, há uma grande resistência do empresariado; segundo, qual é o tempo ideal? São 15 dias, 30 dias, 45 dias, como na Inglaterra? É algo difícil pensar em ver o comércio, as empresas, fechados por 45 dias. A gente aprende muito, mas aplica pouco.


Você acha que o brasileiro perdeu o medo do vírus?


Não sei se perdeu o medo. Mas acho que o brasileiro está numa situação em que ele escolhe entre matar ou morrer. Ele percebeu que a epidemia não vai acabar tão facilmente como imaginava no início de 2020. O trabalhador se arrisca pra ver o que acontece, porque não tem mais auxílio emergencial, não tem política pública para mitigar os efeitos na economia, e o cidadão fica na posição de escolher entre matar ou morrer. É claro, uma parcela da população não ligou pra epidemia e seguiu com o mesmo comportamento.


Há especialistas aventando a hipótese de que a epidemia possa ser controlada no mundo, mas que perdure no Brasil, por causa da formas equivocadas de combate. Como você vê?


A Organização Mundial da Saúde (OMS), recentemente, admitiu um padrão endêmico da covid-19 e não mais epidêmico. Então, na melhor das hipóteses, é tratar a covid como uma endemia, ou seja, uma doença com a qual a gente vai ter que aprender a conviver, assim como a gripe suína, o H1N1. Vamos ter que fazer vacinas, atualizá-las, tomá-las todo ano. Isso em plano mundial.


Se a gente contar do início da circulação, em 2019, na China, temos quase dois anos de convivência direta ou indireta com o coronavírus. Em relação a outras pandemias, esse tempo é normal? Está além do esperado?


Vamos pegar o registro da pandemia anterior, em 2009, de gripe suína. A OMS levou 14 meses para declarar a pandemia da gripe suína controlada. Nós já estamos praticamente nos 14 meses – foi declarada em março do ano passado – e a OMS simplesmente não tem ideia de quando ela estará controlada. É uma pandemia muito mais ameaçadora e que poderá gerar efeitos ainda mais desagradáveis para a humanidade.


Pela sua experiência, de um ponto de vista histórico, onde se encaixa esse coronavírus? Qual o pior pesadelo que se pode enfrentar com um vírus?


O pior pesadelo a gente está vivendo, que é uma variante atrás da outra. Com um padrão filogenético, a gente já estava tendo dificuldade. Essas mutações são tão grandes, tão rápidas, que daqui a pouco a gente vai estar falando, ‘pera aí! A gente não tá mais com um Sars-Cov2, mas Sars-Cov3’.


O Governo Federal vem separando pandemia e economia. Isso é correto? O que nos ensina a História sobre crises sanitárias e o bom funcionamento das sociedades?


A História nos ensina que você não pode fazer a gestão de um país olhando só a economia ou só a saúde. Tem que tentar o equilíbrio. O Governo Federal endossa a área econômica como prioridade, mas também torna essa priorização da economia como um ambiente favorável ao desastre sanitário que estamos vendo no Brasil. Um ano depois do início da política voltada para o controle da epidemia, a gente chega à seguinte conclusão, sem precisar ser economista ou sanitarista: a economia está afundando e a saúde pública também. Ou seja, não funcionou. Quando você prioriza somente a economia e deixa a saúde pública, você não alcança o objetivo nem de salvar a economia, nem a saúde pública.


Com o atual panorama da vacinação no Brasil, qual é a perspectiva que você enxerga para o País?


Vamos trabalhar com a ideia de curto, médio e longo prazos. Vou chamar curto prazo os próximos 60 dias; médio, 120 dias, e longo, mais de 12 meses. De curto prazo é zero. Estamos sem possibilidade de fazer uma vacinação em massa – não estamos conseguindo vacinar nem o público alvo. No médio prazo, existe a possibilidade de termos aumentar as doses. No longo prazo, com a produção maior de vacinas no País. a perspectiva é positiva. Não que o Governo Federal esteja se esforçando, mas porque o Brasil tem infraestrutura industrial e epidemiológica, tem cientistas pra isso. Aliás, nós deveríamos estar na frente, distribuindo vacinas para os países da América do Sul.


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