Conexão Irlanda: Raízes

Nesta edição da coluna, Camila Natalo fala sobre a importância da batata para a história e cultura dos irlandeses

Por: Camila Natalo - De Dublin  -  13/02/19  -  20:56

É quase impossível falar da Irlanda sem falar de batata. O vegetal faz parte do dia a dia irlandês desde a segunda metade do século XVI e, embora as condições climáticas da ilha não favoreçam muito a agricultura, ele se adaptou bem no solo local, sendo fácil de se estocar e ser consumido durante o inverno.
Sem a iguaria em solos irlandeses não existiriam pratos como Coddle (uma espécie de ensopado com sobras e, claro, batatas!), Colcannon (um purê de batatas com couve), Boxty (uma panqueca de batatas) e até mesmo os chips de batatinhas com sabor. O proprietário da Tayto, uma empresa de chips irlandesa, foi responsável por produzir as primeiras batatinhas do mundo com sabor, sendo elas de queijo e cebola e vinagre e sal. A marca, aliás, é tão famosa por aqui que é tema de um parque de diversões, com a maior montanha russa da Europa.
Pode até parecer estranho, mas os sanduíches (com baguetes ou pães de forma) recheados de batata, sejam elas cozidas ou chips, são um dos maiores símbolos de hábitos irlandeses. Por essas e outras, não é à toa que, segundo uma pesquisa de 2018 feita pelo Departamento de Turismo local, a maioria dos turistas vê a Irlanda como a terra da “cerveja e batatas”.
O tubérculo deixou marcas na história do país, sejam elas boas ou ruins. Quando a planta chegou por aqui, por exemplo, havia menos de 1 milhão de pessoas vivendo na Ilha Esmeralda. O alimento foi responsável por um crescimento exponencial durante os séculos XVIII e XIX. E, mais ou menos em 1840, a população havia explodido para mais de 8 milhões, ainda que a maioria fosse muito pobre.
E o que hoje é questão não só de cultura, mas também de gosto, nesta época foi pura falta de escolha. Em 1800, cerca de um terço da população irlandesa dependia exclusivamente da batata. Nessa época, uma criança abaixo de 11 anos chegava a comer até 2,2 kg, uma mulher adulta comia até 5,1 kg e um homem adulto até 6,4 kg.
O ápice do problema foi que, em 1844, uma praga assolou as plantações de batata pela Europa, causando uma tragédia na ilha, já que os irlandeses eram totalmente dependentes da iguaria. Um dos motivos para a praga causar tal fatalidade, somente na Irlanda, deve-se principalmente à situação política da época e ao intervencionismo inglês.
Foi por isso que o período de 1845 a 1849-1852 ficou conhecido como “A Grande Fome”, sendo marcado pela praga nas colheitas, fome, doenças e emigração, além de ser a maior catástrofe demográfica a atingir a Europa entre a Guerra dos Trinta Anos e a Primeira Guerra Mundial.  A população foi reduzida entre 20 e 25%, sendo que cerca de um milhão de pessoas morreram por falta de alimento e doenças e outros milhões se viram forçados a emigrar, principalmente para os Estados Unidos e Canadá. 
A tragédia é recordada em vários memoriais por toda a Irlanda. Em Dublin, estátuas de pessoas franzinas, do artista Rowan Gillespie, representam aqueles que tentaram fugir da fome. Em Cohb (conhecida até 1920 como Queenstown), no condado de Cork, o Queenstown Story preserva a memória dos dois milhões e meio de irlandeses que deixaram o país naquele porto entre 1848 e 1850. Cohb, inclusive, foi a última cidade onde o Titanic atracou, antes de seu trágico naufrágio.
Ainda que mais de um século tenha se passado desde tal fatalidade, dois aspectos dessa história permanecem muito ligados à cultura irlandesa. Um deles é o empenho dos irlandeses, famosos ou não, no combate à fome a nível internacional. Em 1985, o irlandês Bob Geldof, líder do grupo de punk rock Boomtown Rats e fundador do Live Aid (concerto de rock que tinha como objetivo arrecadar fundos em prol dos famintos na Etiópia) revelou que os irlandeses foram o povo que mais contribuiu para a recolha de fundos da campanha, com o maior valor per capita do que o de qualquer outro país. Sem contar que diversas ONGs daqui também desempenham um papel central no combate à fome na África. O outro ponto já está bem claro desde o início do texto: apesar das cicatrizes, a batata nunca sairá da culinária e dos corações irlandeses. 


 


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