Conexão Argentina: Pobreza e falta de opções, dois males argentinos

Na edição desta coluna, Samuel Rodrigues fala sobre a atual situação do país

Por: Samuel Rodrigues - De Buenos Aires  -  29/01/19  -  20:19

Na semana passada, vi um animal puxando uma carroça. Era um humano. Da mesma espécie de Marie Curie e Albert Einstein, de Mercedes Sosa e Astor Piazzolla, de Marta e Pelé. Que, por alguma razão desconhecida, não tem como ofício as pesquisas científicas, a música ou os gols. Ele se dedicava a revirar as latas de lixo de Buenos Aires atrás de quinquilharias que pudesse vender para ganhar alguns pesos.


A raça humana foi capaz de viajar ao espaço e de explorar as profundezas do oceano, de inventar os antibióticos e de aproveitar a energia do Sol, mas não conseguiu acabar com sua própria pobreza.


Escrevi há duas semanas, neste espaço, que a situação na Argentina pode, à primeira vista, não parecer tão ruim se comparada à do Brasil como um todo, segundo dados gerais de organismos internacionais. Mas é curioso como em 2019 a miséria é mais evidente, o que talvez mostre a defasagem dessas informações. O presidente Mauricio Macri não inventou a pobreza ao tomar posse, três anos atrás, mas tampouco ajudou a reduzi-la.


O cinturão de miséria no entorno de Buenos Aires, e mesmo dentro, em bairros periféricos, se formou nas últimas sete décadas. O emprego está na capital federal, e muitos trabalhadores enfrentam mais de duas horas de viagem para voltar para casa ao fim do dia. Alguns de renda mais baixa tiveram que ir embora da cidade devido ao aumento dos aluguéis.


Para uma criança não ser considerada pobre na Argentina, segundo a Unicef, precisa ter acesso a direitos básicos como educação, proteção social, moradia adequada, saneamento básico, água potável e um ambiente seguro. De acordo com esses parâme-tros, 6,3 milhões de menores de 18 anos, ou 48% da população desta idade, são pobres.


As previsões para 2019 não são boas. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projeta uma contração de 1,9% da economia argentina, como consequência de desequilíbrios fiscais e políticas de ajuste. Em 2018, a contração foi de 2,8%, segundo projeção. Quando a economia encolhe, há menos empregos e, portanto, mais pobres.


As tais políticas de ajuste vieram nos últimos três anos na forma de cortes nos subsídios, gerando aumentos vertiginosos das tarifas de transporte, do gás e da eletricidade. Eram necessários, segundo o governo eleito após 12 anos de kirchnerismo, para sanear as contas e colocar o país na rota do desenvolvimento econômico; para reconquistar a confiança dos investidores, atraindo assim recursos do exterior; e para frear a inflação, de forma a melhorar o poder de compra da população e, consequentemente, estimular o consumo.


Se o plano tivesse dado certo, a Argentina provavelmente teria controlado a inflação, que segundo dados oficiais do governo fechou 2018 em 47,6%. Antes de assumir, Macri afirmava que esta seria a parte mais fácil do plano e que, com preços estáveis, o argentino esqueceria os dólares, que são usados para poupar, e passaria a pensar em pesos. Se o agora presidente estivesse certo, talvez o país não tivesse precisado pedir um empréstimo de US$ 57 bilhões ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Se os aumentos de tarifas e cortes de subsídios fossem a solução, a economia do país não teria encolhido.


Por outro lado, não se pode fechar os olhos para a corrupção praticada durante o governo de Cristina Kirchner. Mesmo com a Justiça em seu encalço, ela deve tentar voltar à Casa Rosada. E a cerca de nove meses da eleição, parece não haver ninguém capaz de ameaçar a provável disputa bipolar entre Macri e Cristina.


Em resumo: outro mal da Argentina, além da miséria, é a pobreza de opções.


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