À espera de autorização judicial, São Vicente irá ganhar laboratório de ‘Cannabis’

A iniciativa tem como principal objetivo ajudar no tratamento de cerca de 60 pacientes

Por: Ravena Soares  -  02/07/23  -  07:06
Fernanda Gouveia quer dar acesso a remédios feitos à base da planta para pessoas menos favorecidas
Fernanda Gouveia quer dar acesso a remédios feitos à base da planta para pessoas menos favorecidas   Foto: Sílvio Luiz

Um laboratório para a fabricação de remédios à base de Cannabis está sendo construído na sede do Instituto Articulação de Tecnologias Sociais e Ações Formativas (Adesaf), em São Vicente. Para que funcione, espera-se autorização judicial.


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A iniciativa tem como principal objetivo ajudar no tratamento de cerca de 60 pacientes assistidos pelo Núcleo de Atenção à Saúde e Cuidados Integrativos (Nasci), que, desde abril, fazem uso contínuo de um óleo à base da planta.


De acordo com a presidente e fundadora do instituto, Fernanda Gouveia, a ideia é que a população menos favorecida também tenha acesso ao tratamento adequado. “Hoje, uma consulta particular custa, em média, de R$ 500,00 a R$ 700,00. O remédio chega a custar mais de R$ 1 mil”.


Ela também diz que, por se tratar de uma planta malvista pela sociedade, não são todos os médicos que prescrevem o tratamento, principalmente no Sistema Único de Saúde (SUS).


O óleo é fornecido por entidades parceiras da Adesaf. “Nós temos um limite de remédios recebidos, por isso só atendemos essa quantidade de pessoas, mas nós temos uma lista de espera gigante. Então, à medida que começarmos a produzir o nosso próprio óleo, estendendo a nossa quantidade de parceiros, vamos conseguir atender mais pacientes”.


Fernanda ainda diz que, “além de conseguirmos produzir o óleo e atender mais pessoas, entendemos que essa luta não para por aqui. Ela é para todos”. A maior dificuldade é a questão legal para a produção do óleo. “Por isso, estamos entrando com o processo judicial para podermos produzir o remédio”.


Justiça

O advogado Antônio Pinto, que atende o instituto, cita que o Artigo 2º da Lei 11.343, de 2006, diz que são lícitos plantio, cultivo, cultura e colheita da planta para fins medicinais ou científicos. “Depois disso, não veio nenhuma outra lei complementar para tratar do tema. Então, esse é um vácuo legislativo”, explica.


Para o advogado, a Constituição Federal indica, como cláusula pétrea, o acesso à saúde e o direito à dignidade. Assim, o tratamento com Cannabis faria parte da norma, pois melhora o estado de saúde de pacientes que fazem uso dele.


Como o SUS nem sempre garante esse tipo de atendimento, um caminho são associações que atendem pessoas que utilizam a Cannabis para fins medicinais. Uma delas é a Flor da Vida, em Franca, no Interior do Estado. O advogado também faz parte desse projeto e diz ver muitos resultados.


No caso da Nasci, serão feitos um estudo e um histórico para que haja autorização judicial para o funcionamento do laboratório. Ainda segundo o advogado, o espaço está sendo equipado com base em normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Também apresentaremos as fichas dos pacientes que estão sendo acompanhados. Usaremos de tudo para provar os benefícios do tratamento”.


Lei estadual

Em janeiro, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) sancionou a Lei 17.618, que institui a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol. No mês anterior, a Assembleia Legislativa tinha aprovado a proposta, de autoria do deputado estadual Caio França (PSB).


A lei estabelece que a rede pública de Saúde do Estado e a rede privada conveniada ao SUS forneçam, de graça, medicamentos com canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC) — dois derivados da Cannabis.


Duas semanas

Ter tempo para o marido, dormir a noite toda, tomar café da manhã tranquilamente e assistir ao noticiário fazem parte da rotina de muitas mães. Mas, até abril, essa não era a realidade da nutricionista Victória Régia, de 41 anos. Foi quando seus filhos, ambos com Transtorno do Espectro Autista (TEA), começaram a se tratar com Cannabis no Nasci, da Adesaf: Samuel Joshua, de 16, e Daniel Calleb, de 7.


Daniel (à esq.) passou a dormir sozinho no quarto, e Samuel está mais desinibido. Victória se diz agradecido
Daniel (à esq.) passou a dormir sozinho no quarto, e Samuel está mais desinibido. Victória se diz agradecido   Foto: Silvio Luiz/AT

“Eu já havia ouvido falar do óleo de Cannabis, não só como tratamento do TEA, mas também de outros transtornos e doenças. Só que ainda era algo elitizado, acessível apenas para uma parte da população, e isso me entristecia. Então, quando o Nasci surgiu e nos deu essa oportunidade, eu agradeci”, conta.


Victória diz que os resultados apareceram nos primeiros 15 dias de tratamento, “no sono, na comunicação e na sociabilidade”. O Daniel, por exemplo, só conseguia dormir entre ela e o marido, o que não permitia que eles tivessem uma boa noite de sono. “Hoje, ele dorme no quarto dele”.


Evolução

A nutricionista conta que cada filho mudou de uma forma, dentro da personalidade e das particularidades de cada um. “O Daniel, por exemplo, tinha muita resistência à mudança de rotina. Ele também tinha um baixo repertório de vocabulário. Mesmo fazendo terapia há três anos, encontrava dificuldade para comunicação. Hoje, ele consegue pontuar coisas que para muitos são simples, mas que, para mãe de autista, são significativas: o que comeu ontem, o que ele almoçou na escola, se aconteceu algo…”, relata.


Samuel mudou “atitudes na sociabilização, procurou outros jovens para conversar. Parece que desbloqueou um medo. É claro que ele ainda tem suas inseguranças, mas parece que as tem enfrentado de uma maneira melhor, sabe? E eu fiquei superfeliz”.


“Antes eu não falava muito, mas, agora que eu converso mais com o pessoal, tem gente que acha que eu não sou autista. Eu não me comunicava, porque tinha medo de não ser aceito e também do preconceito. Agora, com o óleo, consigo falar melhor do que antes”, diz Samuel.


Benefício

O médico psiquiatra Flávio Falcone, que atende os pacientes assistidos pelo Nasci e trabalha com canabidiol há três anos, diz que o tratamento com matérias derivadas da Cannabis medicinal tem resultado em até 90% dos pacientes.


Há resultado em até 90% dos pacientes, comenta Flávio Falcone
Há resultado em até 90% dos pacientes, comenta Flávio Falcone   Foto: Sílvio Luiz/AT

“É importante ressaltar que esse tratamento é legalizado pela Anvisa e que, no momento, temos mais de 100 mil pessoas cadastradas na agência para recebê-lo”, destaca.


Cada paciente reage de um jeito ao tratamento. Então, a medicação pode ser aplicada com óleo, cápsulas, pomada e vaporização, por exemplo.


O psiquiatra, que também atua na área da Cracolândia, em São Paulo, descreve que a Cannabis medicinal ainda ajuda no tratamento de vícios e de doenças como depressão, dor crônica e câncer. Não há restrição de idade.


O médico menciona benefícios aos pacientes, como diminuição da ansiedade, melhoras na dor, na interação social, na condição geral do paciente com TEA e de sintomas causados por câncer. Pacientes com Transtorno de Personalidade Bipolar e com esquizofrenia não podem consumir medicamentos derivados da planta.


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