Era uma vez, em Santos: Das igrejas aos cemitérios

Tradição de sepultamentos no interior dos templos de Santos foi proibida por Carta Régia promulgada há 120 anos

Por: Sérgio Willians & Colaborador &  -  10/01/21  -  22:41
O primeiro Cemitério Público de Santos, o Paquetá
O primeiro Cemitério Público de Santos, o Paquetá   Foto: Memória Santista

Nos idos coloniais, os primeiros povoadores da região, assim como praticamente todos os homens cristãos do mundo, eram sepultados dentro das igrejas, à exceção dos indivíduos que detinham pouca influência dentro da comunidade, especialmente os escravizados, alguns criminosos e os não cristãos. Essa era uma prática milenar, seguida em boa parte da Europa e repetida na América colonial. Aos desvalidos, era dado apenas o direito de sepultura em cova rasa, em local não muito distante das aldeias, vilas ou cidades. Esta regra fundamental seguida pela sociedade brasileira funcionou até 1801, quando o reino de Portugal publicou uma Carta Régia ordenado a cessão da prática, por razões higiênicas e sanitárias.


Clique e Assine A Tribuna por apenas R$ 1,90 e ganhe acesso completo ao Portal e dezenas de descontos em lojas, restaurantes e serviços!


O costume dos sepultamentos dentro das igrejas se devia, basicamente, à ideia piedosa de que eles aumentavam as chances do falecido no acerto de contas post mortem. Assim, a renúncia a esse direito acabou se tornando um choque à cultura do mundo cristão, refletida também em Santos, onde boa parte da população levou muitos anos para respeitar.


Os santistas só acabaram vencidos na sua resistência em função das epidemias que se acumulavam na vida local a partir da metade do século 19. O número de enterramentos em razão da quantidade de mortos vitimados pelas epidemias era tão grande que o ar do interior dos templos ficou insustentável, agravando a crise sanitária na Cidade. Os responsáveis pela burocracia dos enterramentos dentro dos templos eram as Irmandades Religiosas.


Para um cidadão possuir o direito fundamental de ter um local para ser enterrado, era ser membro de uma dessas irmandades. Santos possuía várias, espalhadas pelas igrejas da Cidade, como Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos (a família Andrada pertencia a esta irmandade), Nossa Senhora do Terço, Venerável Ordem Terceira do Carmo, Nossa Senhora do Rosário (onde estava os despojos de Braz Cubas e a mais popular da Cidade), São Benedito, Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora do Rosário Aparecida, Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (cujos mortos ficavam no antigo convento Franciscano do Valongo) e Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, entre outras.


Cemitério público


Em 1851, preocupada com o impacto sanitário provocado pelos surtos epidêmicos, a Câmara de Santos (instituição que detinha o poder de condução da Cidade - ainda não existia a Prefeitura, que é de 1908) adquiriu um terreno quase às margens do Rio dos Soldados, para os lados do futuro Paquetá. Naquele local, distante da Cidade, já existia um cemitério, conhecido como o dos estrangeiros ou protestantes. Eram lá que se enterravam os mortos dos não praticantes do catolicismo romano, em geral ingleses, poloneses e alemães.


Dois anos depois, a municipalidade já havido erguido os muros no entorno do novo cemitério, um grande portão central e, no dia 18, após benção solene, aconteceram os primeiros enterramentos no sítio que ficou conhecido como Cemitério Público Municipal, mais tarde chamado popularmente de Cemitério do Paquetá. As antigas irmandades religiosas migraram, então, para o local, não muito satisfeitas com a medida. Mas se acostumaram. Uma capela, de Santo Cristo, foi erguida no centro do cemitério, em 1855. Os primeiros túmulos eram feitos de mármore branco. Depois, com o tempo, passaram a ser de granito preto, que caracteriza até hoje o local.


Ricos e pobres


Desde o princípio, houve diferenciação dos sepultamentos, entre pessoas desvalidas e abastadas. Enquanto os ricos eram levados em carros enfeitados, puxados por cavalos emplumados, os pobres iam de charrete simples. Com o advento dos bondes, também se criou o bonde funerário, todo engalanado para quem podia pagar, e uma linha específica, de número 9, da Companhia City, com o caixão indo no encosto dos bancos mesmo.


Saboó e Areia Branca


Diante da quantidade de pessoas mortas pelos surtos epidêmicos que assolaram a Cidade nas últimas duas décadas do século 19, Santos se viu obrigado a abrir outro campo para enterramentos, desta vez na região do Saboó. Chamado de Cemitério da Filosofia (por conta da área ocupada, uma antiga chácara chamada de Philozophia), o lugar marcou definitivamente a ruptura entre as classes sociais da cidade. Enquanto o Paquetá se tornava um cemitério da elite santista, o Saboó se tornaria um campo santo popular. O primeiro enterro no local, ocorrido em 10 de abril de 1892, foi o de um menino de 10 anos.


A partir daí, enquanto o Cemitério do Paquetá abrigava falecidos famosos, como Benedicto Calixto, Martins Fontes e Vicente de Carvalho, o do Saboó passou a reunir o povão e algumas figuras populares, como Maria Mercedes Fea, vítima do famoso crime da mala (1928), a quem logo passaram a reputar milagres. Aliás, as lendas urbanas sobrenaturais se multiplicavam no Saboó e uma delas até filme de cinema ganhou em 1951, com a película Alameda da Saudade, 113.


Destarte, nos anos 1950, a Cidade apresentava uma demanda que Saboó e Paquetá já não suportavam mais e a consequência disso foi o surgimento do Cemitério da Areia Branca, instalado em 1953 na crescente Zona Noroeste. O novo campo santo do Município passou a enterrar os indigentes, situação até hoje mantida. O Paquetá ainda era o preferido da elite santista, até o surgimento, em 1983, do primeiro cemitério privado do Município, o Memorial, que trouxe o inusitado de ser verticalizado. Com seus 13 andares e 46 metros de altura, ele chegou inclusive a ganhar, em 1990, o reconhecimento internacional como o mais alto do mundo, registrado no famoso Guiness Book of Records.


Tempos atrás


Braz Cubas foi enterrado na Capela da Misericórdia (que existiu nas proximidades do Outeiro de Santa Catarina) e seus despojos foram trasladados depois para a primeira Matriz, consagrada à Nossa Senhora do Rosário dos Brancos (demolida em 1908, e localizada onde hoje está a Praça Antônio Telles). Havia enterramento nas igrejas do Valongo, Carmo e a outra Rosário, que recebia corpos de homens e mulheres negros (daí o nome Rosário dos Homens Pretos - que ainda existe, defronte à Praça Rui Barbosa). José Bonifácio de Andrada e Silva também foi sepultado em igreja, no Carmo, antes de ter seus despojos trasladados para o atual Panteão, que fica no mesmo complexo religioso. Havia também enterramentos na Igreja da Misericórdia, que ficava onde está hoje o Centro da Praça Mauá.


Foi por isso que, em 1998, quando fizeram as obras do banheiro subterrâneo local, várias ossadas foram encontradas. Eram os mortos sepultados da Misericórdia.


Sobre o autor -Sergio Willians é jornalista e pesquisador da história de Santos. Conheça mais de seu trabalho clicando aqui.


Tudo sobre:
Logo A Tribuna
Newsletter