Em recuperação da Covid-19, padre Cláudio Scherer fala sobre sua 'quase morte' em Santos

“Tenho certeza de que minha recuperação é um milagre", revela durante entrevista exclusiva para ATribuna.com.br

Por: Nathália de Alcantara  -  26/01/21  -  10:26
Padre Cláudio defende que as pessoas não sairão melhor dessa pandemia, pois não evoluíram
Padre Cláudio defende que as pessoas não sairão melhor dessa pandemia, pois não evoluíram   Foto: Vanessa Rodrigues/AT

Por pouco mais de três meses, a comunidade católica se uniu em oração pela recuperação de um dos padres mais queridos da região e a corrente logo ultrapassou crenças e religiões. Depois de uma vida dedicada a cuidar de outras pessoas, sem nunca ter gripe, pressão alta ou ser internado, o padre Cláudio Scherer, de 50 anos, precisou ser cuidado. Ele foi diagnosticado com covid-19 e ficou hospitalizado de 9 de setembro a 10 de dezembro – sendo 28 dias intubado na UTI. De Sapiranga (RS), ele acolheu Santos em seu coração há mais de 20 anos e a Cidade o acolheu de volta. Formado também em Jornalismo e Psicologia, atua como pároco da Imaculado Coração de Maria e é pró-reitor de Pastoral da Universidade Católica de Santos. “Tenho certeza de que minha recuperação é um milagre”. Confira a entrevista:


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Como a doença começou a se manifestar no senhor?
O padre Nelson Caleffi (que também atuava na mesma paróquia e morreu em 27 de setembro, em decorrência das complicações da covid-19 e de um câncer de intestino) precisava de alguém que cuidasse dele. Então, eu fiquei por 15 dias e deve ter sido quando me contaminei. Meu primeiro sintoma foi a febre, em 1º de setembro. Do dia 9 ao 22, tentaram tudo para que eu não intubasse, mas não tinha mais o que ser feito. Meus pulmões estavam tomados pela doença. É um desespero, porque você implora por essa máscara, por oxigênio, já que sozinho não consegue mais respirar. Na UTI, demorava mais de 1h30 para tomar um prato de sopa.


Teve medo de morrer?
Quando criança, morava perto de um cemitério e nossas brincadeiras eram lá dentro. Nunca tive medo da morte. No seminário, já fazia enterros e, quando padre, frequentava hospitais e tinha o pensamento de que chegaria a minha vez. Isso tudo ajudou a me preparar. Eu sou padre, mas não estou distante dos outros seres humanos.


O padre ficou internado por mais de três meses e intubado por 28 dias
O padre ficou internado por mais de três meses e intubado por 28 dias

Como foi essa experiência?
Ao longo da vida, vi muita gente sofrendo, no hospital, sendo intubada e sempre perguntava o motivo de não ser eu. As pessoas criam uma realidade na qual doença, morte de tristeza não existem. Foi uma experiência de muita proximidade com todos aqueles que, ao longo dos anos, permitiram que eu participasse do sofrimento deles. Estive unido a eles.


Esse tipo de situação é diferente para quem tem fé?
Tenho certeza de que quem tem fé vê as coisas de outra maneira. Antes de intubar, me sentia no colo de Nossa Senhora, que é colo de mãe, que é colo mais protegido do mundo. Lembro de aceitar a vontade de Deus, que estava nas mãos dele. Em nenhum momento me senti desamparado ou traído. Uma vida de fé ajuda demais nesse momento, mas é preciso ter a fé de confiar, de se entregar, não a fé de interesse, para que seja feita só a nossa vontade.


O senhor teve sensação, pensamento ou sentimento que o ligasse a algo maior?
Tive a sensação de estar protegido durante toda essa experiência. Minha pressão chegou a 6x3. Em experiência de quase morte, as pessoas relatam coisas diferentes. Eu sei que tem uma vida que vem depois dessa, que é uma vida verdadeira.


O que o senhor aprendeu com tudo isso?
Olhei tudo de dentro, sou parte da pandemia. Ela tocou minha família, a paróquia. Eu brigava muito com o meu irmão, que era três anos mais velho. Ele tinha uma personalidade forte e não nos falávamos há uns 10 anos. Era impossível falar com ele. Eu me lembro que, quando comecei a despertar na UTI, escutava só a voz dele, do Marcos, meu irmão. Ele dizia que estava ali para me cuidar, para eu não ter medo e que as nossas diferenças a gente resolveria depois. Ele deixou a família, os filhos e um neto de 9 meses no Rio Grande do Sul para cuidar de mim aqui. Marcos também pegou covid e morreu em uma semana, em 4 de dezembro. Deus nos deu a oportunidade de fazermos as pazes. É muito curioso, porque ele sentiu que ia morrer, me ligou minutos antes pedindo que eu fosse até lá, mas eu não podia me mexer. Nessa experiência, o Marcos tocava meu corpo, pois eu estava sem movimentos, mexia no meu excremento, já que eu não conseguia fazer minhas necessidades. Foi muito curativo para nós dois.


Algo mudou dentro do senhor?
Na verdade, eu resgatei algo que já tinha dentro de mim, que é essa presença nos hospitais. Sempre gostei muito de estar com os doentes e eu deixei em segundo plano. É necessário estar ali, naquele momento, e gastar muito tempo. A presença religiosa faz toda a diferença. Como voltei a este mundo, é algo que vou resgatar. Ficarei atento às necessidades dos doentes e os escutarei de verdade.


Como tem sido a sua recuperação?
Estou em luta para vencer as sequelas deixadas pelo coronavírus. Ele é como um tsunami que passa e destrói tudo, deixando um rastro terrível. A minha sequela é muito motora. Internamente, está tudo bem, mas o estrago motor é grande. Faço fisioterapia duas vezes ao dia e já estou bem melhor, mas a locomoção está difícil. Ando com andador, mas sinto muita dor nas pernas. Tenho dificuldade nos braços, pois eles não esticam, estão completamente duros. Fiz um batizado e, na celebração, tive muita falta de ar e suor, como no começo dos sintomas.


Qual mensagem o senhor acredita que deve passar para as pessoas que lerem sua história?
Que as pessoas que seguem pensamentos como o do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) devem ser criminalizadas. O que estão fazendo em nome do seu egoísmo é de uma crueldade enorme. Elas estão se contaminando e levando a morte para suas casas, suas famílias. Não tem economia que pague o preço de uma vida. Pensam o contrário só as pessoas más. Não é só a sua vida, mas também de outra pessoa. Cobramos as autoridades, mas a responsabilidade individual não pode ser retirada. As pessoas não sairão melhor dessa pandemia, pois não evoluíram e não pensam no coletivo. Elas seguem errando porque estão voltadas para si mesmas.


Em 2 de novembro, a última foto dos três irmãos juntos: com ele, Marcos e Fátima
Em 2 de novembro, a última foto dos três irmãos juntos: com ele, Marcos e Fátima   Foto: Arquivo Pessoal

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