Liberar corpo vira drama para famílias na Baixada Santista

Serviço de Verificação de Óbitos de Santos (SVO), do estado, não tem médicos para atender demanda; cadáveres são levados ao IML

Por: Maurício Martins & e & Nathália de Alcantara & Da Redação &  -  21/11/19  -  23:47
IML de Santos deveria atender só óbitos suspeitos ou consequência de crimes, mas fica sobrecarregado
IML de Santos deveria atender só óbitos suspeitos ou consequência de crimes, mas fica sobrecarregado   Foto: Irandy Ribas/ AT

O sofrimento pela perda de um parente é ainda maior na Baixada Santista. A liberação de um corpo para velório, mesmo que a morte tenha sido por causa natural, enfrenta sérias dificuldades. A situação dramática é reflexo da falta de médicos no Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), do Governo do Estado, que funciona no Hospital Guilherme Álvaro (HGA) e atende a região. O local fica fechado de sexta-feira a domingo e funciona precariamente durante a semana. 


Valdir Teixeira dos Santos, de 58 anos e morador de Itanhaém, sentiu isso na pele. A mulher dele, Lourdes Nunes Menezes, de 54 anos, morreu em casa no último dia 25, uma sexta, depois de receber alta do hospital onde ficou internada por 20 dias. A saída da família foi liberar o corpo no Instituto Médico Legal (IML) de Santos, unidade responsável apenas por casos de morte violenta.


“Ela tinha diversos problemas de saúde. Chamamos a ambulância, mas já estava morta. Então, veio a funerária”, diz o marido. Foi quando começou a saga do que fazer com o corpo de Lourdes. A família conta que foi até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da cidade para pegar um atestado de óbito, mas a médica de plantão encaminhou o caso para o IML, justificando que o SVO estava inativo.


Mas, segundo Valdir, a orientação foi registrar um boletim de ocorrência (BO) como morte suspeita (e não natural), para que o atendimento não fosse negado no IML. No BO, consta que “o médico plantonista solicitou o SVO para detectar a causa da morte. Todavia, por não ter médicos, o corpo foi para o IML”.


O próprio Valdir diz que ainda não entendeu o que houve naquele dia. “Estava perdido. Minha mulher lutava para sobreviver, morreu e ainda acontecem complicações assim. Minha cabeça estava na lua e ninguém explicava as coisas com clareza. Eu só queria poder resolver tudo aquilo e velar a Lourdes como ela merecia”. 


Falta estrutura 


A Reportagem entrou no SVO e apurou que a unidade realmente não funciona adequadamente. “A situação vai piorar em dezembro, quando um médico entrará de férias”, alerta um funcionário, que não terá a identidade revelada para preservá-lo. 


Enquanto isso, o IML de Santos é quem recebe os corpos por morte natural. Os profissionais dizem que, de cada dez corpos que entram em um fim de semana, oito não são de natureza violenta (por homicídio, suicídio, afogamento, acidente ou morte suspeita).  


“A maioria dos casos de violência tem causa aparente, exceto as mortes suspeitas. Elas são investigadas para definir se foi overdose ou envenenamento”, explica um funcionário, que não terá o nome divulgado para se evitarem represálias. 


Ele diz que o corpo normalmente já chega acompanhado de um BO registrado como morte suspeita. Assim, o IML não pode recusar o atendimento. “É dar um jeitinho. Isso acontece até quando a vítima tinha câncer”. 


Outra funcionária do IML, que também não terá a identidade revelada, confirma. “É um absurdo. No SVO não tem médico e todos sabem. Mesma coisa no IML ou até pior. Sábado e domingo é quando dá mais problema, mas não só nesses dias a batata quente sobra para o IML”.


Ela conta que vive um dilema toda vez que chega alguma família nessa situação. “É difícil para todos. Ficamos exaustos, mas os parentes sofrem. A funerária leva o corpo para o SVO. Se não tiver médico, o morto não fica nem na geladeira, porque demora até quatro dias para descongelar e poder mexer. Aí, a funerária fica vagando com o corpo. É ir à delegacia, ao IML, até alguém aceitar ajudar”. 


A preocupação dos funcionários do IML de Santos, agora, é com a temporada de verão. Nessa época, é natural um aumento no número de mortes de idosos, por causa do calor. “Como vamos receber até 30 corpos num dia? Só o IML Santos fica aberto aos fins de semana. Não temos estrutura”. 


Samu atesta mortes naturais 


Os transtornos causados pela falta de médicos no SVO fizeram com que Santos e Praia Grande tomassem medidas. Hoje, os profissionais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) preenchem declarações de óbito em casos de morte natural.


Segundo o secretário de Saúde de Santos, Fábio Ferraz, a ideia ameniza o problema, mas não é solução. Quanto ao IML atender a demanda do SVO, ele diz que o ideal é “cada um no seu quadrado”. “Se houver essa mistura, já não estamos no cenário ideal. São serviços com missões diferentes e é razoável que tenhamos as duas.” 


Nova postura 


O secretário de Saúde de Praia Grande, Cleber Suckow Nogueira, também autorizou os médicos do Samu a fazer a declaração de óbito quando constatada uma morte natural em casa, desde que se sigam protocolos, como descartar violência e ouvir a família.  


“Exclusivamente pela falta do serviço [no SVO], principalmente em fins de semana e feriados. Os municípios não têm onde guardar os corpos e queremos evitar mais desgaste e transtornos para as famílias. Precisa ter uma solução, não deixar sobrar para o município”.


Todos sabem, mas nada é feito  


Há falta de servidores no SVO, garante o diretor regional do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado, Alexandre Rodrigues. Ele confirma o fechamento do local aos fins de semana. “Todos têm ciência desse quadro”. O sindicato cobra reposição de trabalhadores. “Cada um tem sua especialidade. Mandar corpos que seriam do SVO para o IML pode prejudicar um laudo”.


Situação crítica 


O presidente da Associação dos Médicos Legistas do Estado, Celso Domene, afirma que a situação é crítica nos IMLs da Baixada Santista por falta de médicos e piora com essa situação. 


“Orientam as famílias para irem à delegacia, o delegado faz requisição, e o IML é obrigado a atender. Ficamos com uma coisa que não é nossa, porque outro serviço está sobrecarregado e quer se livrar”. 


Segundo ele, os casos são comuns. “Tem requisição de morte suspeita sem sentido algum. Um velhinho, com mais de 80 anos, estava ruim em casa e morreu. Morte suspeita de quê? Usam artifícios na morte natural para jogar para o IML, que fica sobrecarregado e ainda é criticado porque está demorando para fazer exames”.


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