'Santos é um laboratório fantástico para experiências urbanas sustentáveis', diz Ariadne Daher

Neste domingo (8), Dia Mundial do Urbanismo, A Tribuna traz uma breve fala da arquiteta e urbanista que trabalha em Curitiba na equipe de Jaime Lerner

Por: Arminda Augusto  -  08/11/20  -  14:30
'O cidadão não pode ser apenas um elemento passivo na cidade, mas um protagonista'
'O cidadão não pode ser apenas um elemento passivo na cidade, mas um protagonista'   Foto: Arquivo Pessoal

Uma ciência humana que busca acomodar no mesmo espaço urbano todas as atividades cotidianas, mas sem que se perca o bem estar, a qualidade de vida. Em resumo, a ciência que estuda os espaços e a melhor forma do homem ocupá-los. Neste domingo (8), Dia Mundial do Urbanismo, A Tribuna traz uma breve fala da arquiteta e urbanista Ariadne Daher, que trabalha em Curitiba na equipe de Jaime Lerner, o conhecido urbanista que revolucionou, quando prefeito, o modo de ser de Curitiba, criando e moldando ambientes e serviços urbanos de tal forma que virou referência no Brasil. 


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Ariadne conhece Santos e já fez projetos para a Cidade. “Poucas vezes eu tive a oportunidade de trabalhar com uma cidade com tantos potenciais, uma riqueza extraordinária. O fato de ter o Porto é uma âncora econômica importantíssima. O patrimônio edificado, histórico, ainda que em diferentes estados de conservação, também. A cidade é plana e compacta. É possível, com um bom planejamento em mobilidade, fazer com que as pessoas se desloquem menos ou com mais facilidade. A mesa está posta”, diz.


O que é o urbanismo, em conceito bem simples e de fácil compreensão?


Depende um pouco do recorte histórico que se faz. Se focamos a relação entre a sociedade e o seu espaço de vivência em cidades, o urbanismo é um campo de estudo milenar. Em uma interpretação mais específica, é um campo do conhecimento que surge a partir da emergência da cidade industrial (capitalista), pensando em como planejá-la, organizá-la. O termo é um neologismo decorrente de um tratado de Idelfonso Cerdá a partir das intervenções em Barcelona de 1850. Na minha interpretação, o urbanismo seria o campo de reflexão e ação sobre o que são as cidades e como torná-las o melhor possível para as pessoas.


Podemos dizer que urbanismo é uma ciência humana?


A arquitetura, desde os tempos de Vitrúvio, trabalha com a integração da tríade da forma (estrutura), função e beleza. Entendo o urbanismo como uma ciência humana em muitos níveis, primeiro porque trata de pensar a cidade primeiramente para as pessoas; e também porque, para além de aspectos técnicos, precisa trabalhar com os valores humanos e as suas necessidades de expressão e encontro com o simbólico, com a dimensão de identidade, de “lar”. Vale lembrar que existe uma relação histórica entre a cidade e o exercício do pensamento político como uma dimensão ética da vida humana, de um exercício que se dá na coletividade.


Falar em urbanismo aplicado a um município é muito menos complexo que falar em regiões metropolitanas?


Na medida em que temos atribuições claras para o nível municipal de gestão e mecanismos institucionais consolidados para isso, diria que nesse sentido, sim. A escala metropolitana é algo mais tênue, que requer muita articulação intergovernamental / interinstitucional, e sensibilidade para entender que essas fronteiras administrativas não correspondem à dinâmica “real” do cotidiano das pessoas, dos investimentos... O Estatuto da Metrópole é uma ferramenta importante, mas sua implementação ainda é muito incipiente. Falta também, às pessoas, a identificação dessa escala (em termos políticos, institucionais, simbólicos) e, portanto, não existe praticamente uma pressão política/social para que as coisas aconteçam nesse nível.


Como planejar um município para 10, 20, 30 anos em uma sociedade tão dinâmica, em que aspectos econômicos interferem fortemente no modo de vida das pessoas?


Vou me inspirar muito no trabalho do Jaime (Lerner) para essa resposta. O planejamento é um processo, ou seja, não é algo que "termina", e "tendência não é destino", ou seja, uma vez que se detectam tendências indesejáveis, a partir de canais de comunicação fortes e saudáveis com a sociedade, rumos podem ser corrigidos, calibrados, sempre. Essa visão de futuro, estratégica, esse "sonho compartilhado" precisa ser construído em conjunto com a sociedade, para que tenha a aderência necessária para transcender o tempo político. Elementos institucionais (planos diretores, as legislações de uso do solo, por exemplo) precisam dar respaldo a essa visão. Construído esse sonho compartilhado, é necessário aproximar o tempo técnico do tempo político. O prefeito, os gestores municipais precisam deixar sua "marca", mostrar aos seus constituintes o como suas ações contribuem para atingir esses objetivos maiores. O efeito demonstração dado pelas “acupunturas urbanas” são um caminho interessante.


Acupuntura urbana?


A ideia da acupuntura é uma intervenção rápida e precisa em um território. Como na Medicina, em que você vai com a agulha no ponto exato. E a partir dessa intervenção, o sistema urbano, como um todo, começa a recuperar sua saúde. Por exemplo, quando fizemos o trabalho aí em Santos, um dos pontos em que propusemos mudança foi na região do Mercado Municipal, onde tem a bacia das catraias. A partir de uma intervenção pontual, coordenada, é possível recuperar uma parte importante do tecido urbano da região central, pelo efeito demonstração que esse novo espaço traz à Cidade.


O que é efeito demonstração?


É colocar na mesa não só uma carta de intenções, em que as pessoas olham e não veem acontecer. Efeito demonstração é fazer acontecer. É trazer para o concreto um desejo de mudança. A região central de Santos está decaída, dilapidada, ainda que tenha museu, tenha a Prefeitura, tenha comércio. Mas não é uma área de desejo de moradia. Então, a partir do momento em que você faz uma intervenção urbana que demonstre todo o potencial da região, mostre para o santista a história que a região carrega a partir dessa intervenção, você começa a reverter na mente e no coração das pessoas a imagem que hoje elas têm do Centro. Isso é efeito demonstração.


Essa “acupuntura urbana” já foi feita algumas vezes em Santos, com revitalização de imóveis antigos, por exemplo, mas o efeito demonstração acabou não acontecendo, e o entorno continuou degradado. Por que isso ocorre?


Existe uma questão de escala. Não se pode trabalhar só a recuperação de um imóvel. No trabalho que fizemos para o Mercado Municipal de Santos, por exemplo, propusemos que as quadras do entorno pudessem acolher moradia, residência universitária, por exemplo, e um comércio mais de mundo mix, sabe? Santos é uma cidade cosmopolita, recebe navios do mundo inteiro, pode ser um endereço para produtos variados desses lugares todos. A agulha da acupuntura não atinge seu objetivo se for algo apenas cosmético. Tem que ter um elemento de ineditismo.


Que parte cabe ao cidadão quando se fala em planejamento urbanístico?


Imensa. O cidadão não pode ser apenas um elemento passivo na cidade, mas um protagonista. Cobrar dos seus representantes as promessas de campanha, exigir canais de comunicação transparentes e se engajar nessas discussões são parte da vida na cidade. Tentar também entender que existem demandas importantes para a cidade que transcendem o interesse individual (investimentos em transporte coletivo, por exemplo).


Em cidades com poucas áreas livres para construção, como Santos, como conciliar a necessidade de expansão urbana e bem estar, qualidade de vida, área para lazer?


Tivemos o prazer de trabalhar em Santos, em uma parceria com a Comunitas no programa Juntos pelo Desenvolvimento Sustentável, com um acompanhamento muito próximo das equipes da Prefeitura. Santos tem seus desafios, evidentemente, mas é um campo privilegiado para ser o laboratório de experiências urbanas sustentáveis. O fato de ter um território compacto se alinha com modos de mobilidade mais sustentáveis, e há todo um estoque construído pronto para ser reabilitado, capaz de acomodar o crescimento da população por décadas! Sem falar de áreas como o Valongo, a região do Mercado, os canais de drenagem, todas áreas capazes de serem incorporadas à cidade como novos marcos urbanos e espaços públicos de qualidade.


É possível pensar em qualidade de vida em metrópoles cada vez mais adensadas e com os problemas típicos como sub-habitação, lixo, falta de esgotamento sanitário, mobilidade ruim etc?


Ah, por dever de ofício eu tenho que acreditar que sim ! Mas acredito também por convicção. Ainda que a prática seja sempre mais complicada que o ideal do planejamento, muitas das “soluções” para esses problemas são conhecidas. Na minha perspectiva, é mais uma questão de vontade, prioridade e flexibilidade no pensamento do que uma falta de recursos ou caminhos técnicos.


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