Prefeituras da Baixada Santista compram medicamentos ineficazes contra a covid-19

Guarujá, Peruíbe, Praia Grande e Santos adquirem remédios sem comprovação científica e citam protocolo do Ministério da Saúde

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  06/03/21  -  23:55
Ivermectina é um dos medicamentos adquiridos pelas prefeituras
Ivermectina é um dos medicamentos adquiridos pelas prefeituras

Ao menos quatro cidades da região utilizaram recursos para combate à covid-19 na compra de medicamentos sem eficácia comprovada contra o coronavírus. Juntas, Guarujá, Peruíbe, Praia Grande e Santos gastaram R$ 150.155,00 em difosfato de cloroquina (150 mg) e Ivermectina (6 mg). Foram adquiridas mais de 249,5 mil comprimidos desses remédios, pelas quatro cidades. Os dados estão disponíveis nos portais de transparência dos municípios específicos sobre covid-19.


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Praia Grande foi quem comprou a maior quantidade dos fármacos. Adquiriu 99 mil comprimidos de cloroquina, em 10 de junho de 2020, a R$ 39,6 mil, e 48 mil de Ivermectina, em duas compras: 30 mil em 4 de setembro (R$ 30 mil) e 18 mil (R$10.620,00) em 9 de dezembro de 2020. 


Guarujá adquiriu 40 mil comprimidos de cloroquina, a R$ 18 mil, em 4 de junho de 2020. Já Peruíbe comprou apenas Ivermectina, 1,5 mil comprimidos, a R$ 1.485,00, em 5 de novembro de 2020. Já Santos gastou R$ 40 mil em 50 mil comprimidos de cloroquina, em 14 de abril, e R$ 10.450,00 em 11 mil de Ivermectina, em 2 de dezembro de 2020. 


Apesar dos valores empregados representarem um percentual ínfimo de tudo o que foi gasto no combate à pandemia – Santos, por exemplo, já utilizou mais de R$ 158 milhões –, ainda assim constituem um desperdício que pode sair caro em vista das urgências da pandemia. 


“Importante é testar. Para identificar casos, fazer mapeamento de infectados, e colocar essas pessoas em quarentena o mais rápido possível. Comprar esses remédios é desperdiçar dinheiro e energia”, afirma o infectologista Evaldo Stanislau, diretor da Sociedade Paulista de Infectologia. “Um teste de antígeno custa R$ 35,00, R$ 40,00. Pega esses R$ 150 mil (R$ 150.155,00, gastos pelas prefeituras), quantos testes não se comprariam?”. 


Sem comprovação


Stanislau enfatiza que não há nenhum estudo sólido que demonstre a eficácia desses medicamentos na prevenção ou no tratamento de covid-19. “Nós olhamos tudo. A evidência é pobre”.


Também ocorrem distorções de interpretação do resultado. No caso da Ivermectina, Stanislau cita um estudo australiano, da Universidade Monash, em Melbourne, de abril do ano passado. Nele, de fato constatou-se que o medicamento elimina o coronavírus das células em 48 horas. 


Mas a pesquisa foi realizada in vitro, ou seja, no laboratório, com aplicação direta no vírus. Em seus próprios resultados, orientava que outros estudos deveriam ser feitos para avaliar a eficácia em seres humanos, com dosagens seguras. 


Houve estudos ao redor do mundo, mas essa eficácia não foi comprovada. “Seriam precisos uns 60 comprimidos por dia (de Ivermectina) para fazer algum efeito em humanos”, ilustra Stanislau. 


Esse tipo de desinformação baseada em meias verdades, a partir de genuíno material científico – ou nem tanto – também se estende ao que se sabe hoje sobre cloroquina, hidroxicloroquina e outros tantos medicamentos alardeados como cura ou prevenção à covid-19. 


Cura


Um possível motivo para a persistência de crenças infundadas sobre a eficácia desses medicamentos pode estar relacionado ao alto percentual de cura da doença, avalia o microbiologista do Hospital Albert Einstein, Jacyr Pasternak. “Entre 80% e 85% dos infectados vão ter sintomas leves”. 


Se alguns desses pacientes tomam algo e se restabelecem, tendem a creditar a cura ao medicamento ministrado, quando na verdade foi o próprio corpo que se livrou do vírus. “Seria muito bom ter um remédio além da vacina. Mas, hoje, não temos”, lamenta Pasternak. 


Justificativas


As prefeituras justificam a compra de cloroquina como indicação do Ministério da Saúde. “A aquisição (...) foi feita no início da pandemia, quando o uso para o tratamento da covid-19 tinha respaldo do Ministério da Saúde”, afirma, em nota, a Prefeitura de Santos, afirmando que não realizou mais nenhuma compra desse medicamento. 


Praia Grande vai na mesma linha, de que “os protocolos do Ministério da Saúde recomendavam o uso”. E prossegue: “Mais tarde (...) surgiram novas evidências científicas comprovando a ineficácia do medicamento”. Praia Grande também deixou de comprá-lo para esse fim, posteriormente. 


Guarujá informa que a “compra do medicamento foi realizada na esperança e busca incessante por tratamento a uma doença nova”. E que na época da compra “a Organização Mundial da Saúde (OMS) conduzia ensaios clínicos para checar a efetividade dele contra a covid-19, tendo-os encerrado apenas em julho”.


A Tribuna entrou em contato com o Ministério da Saúde, mas não obteve retorno.


Prescrição


Quanto à Ivermectina, Peruíbe, que só comprou esse medicamento, e Santos afirmam que adquiriram os comprimidos atendendo a uma demanda médica. “O consenso entre profissionais sobre o uso da medicação precoce tem sido comum e apesar de não ter protocolo e não ser preconizado, médicos têm alegado ter visto bom resultado neste tipo de conduta”, justifica Peruíbe, em nota. 


Santos também atendeu aos médicos, mas afirma ter descartado o seu uso, ao ser provada a ineficácia. “A compra do medicamento foi realizada para suprir uma demanda advinda de prescrições médicas das unidades de pronto atendimento”. 


A Cidade afirma ter nova diretriz para casos de covid-19, “baseada nos estudos científicos mais recentes e não recomenda o uso de cloroquina e Ivermectina”. 


Praia Grande afirma que também revisou os protocolos e, agora, utiliza Ivermectina apenas aos fins a que se destina: como antiparasitário. 


Pílulas contra a desinformação


>>Uma pesquisa liderada pelo microbiologista francês Didier Raoult é considerada como o estopim da desinformação sobre a eficácia da cloroquina no tratamento contra a covid-19. As inconsistências principais apontadas por diversos cientistas orbitam a questão da quantidade de pacientes em teste e do ‘sumiço’ de alguns. O resultado do estudo informou que a carga viral de 36 pacientes se mostrou reduzida a partir do sexto dia de ingestão de 600 mg de cloroquina. Mas omitiu seis pacientes (o estudo tinha inicialmente 42); quatro deles sofreram piora clínica, com intubação e uma morte. Esse fato mudaria radicalmente o resultado em relação ao grupo de controle, com 16 pacientes que não receberam o medicamento e nenhuma complicação apresentaram. 


>>No início de fevereiro, em vista das especulações sobre a eficácia da Ivermectina para tratar covid-19, a farmacêutica norte-americana Merck – a criadora do medicamento –, emitiu uma nota afirmando que os cientistas da empresa estão examinando os estudos que relacionam o fármaco ao tratamento de covid-19. “É importante observar que, até o momento, nossa análise identificou: nenhuma base científica para um efeito terapêutico potencial contra covid-19 de estudos pré-clínicos; nenhuma evidência significativa para atividade clínica ou eficácia clínica em pacientes com doença covid-19; e a preocupante falta de dados de segurança na maioria dos estudos”, diz a nota. 


>>Nesta semana, em um painel da Organização Mundial da Saúde, especialistas orientam os países a suspender os recursos com pesquisas em cloroquina e direcioná-los a drogas mais promissoras. “As evidências mostraram que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo sobre a morte e admissão no hospital, enquanto as evidências de certeza moderada mostraram que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo sobre a infecção pela covid-19 confirmada em laboratório e provavelmente aumenta o risco de efeitos adversos”, fazem o alerta, baseado na literatura científica disponível sobre o tema – incluindo estudos utilizados para defender a utilização da droga na covid-19. 


>>Mas, afinal, para que servem a cloroquina e a Ivermectina? A primeira é usada para tratar doenças como lúpus eritematoso, artrite reumatoide, doenças fotossensíveis e malária. Já a Ivermectina é um vermífugo, indicada para combater vermes, parasitas e ácaros.


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