O prazer de ser e se sentir mulher em histórias de lutas da Baixada Santista

No Dia Internacional da Mulher, contamos histórias de luta de diferentes gerações, suas trajetórias e superações

Por: Matheus Müller & Da Redação &  -  08/03/21  -  12:46
No Dia Internacional da Mulher, contamos histórias de luta de diferentes gerações
No Dia Internacional da Mulher, contamos histórias de luta de diferentes gerações   Foto: Reprodução

Sensibilidade não é sinônimo de fraqueza. Pelo contrário, trata-se de uma qualidade fundamental para entender cenários e se preparar às lutas e conquistas. Resilientes e sensíveis, as mulheres demonstram cada vez mais força para superar as adversidades que ainda enfrentam em busca de um bem maior e que deveria ser natural: a igualdade de gênero.


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Embora pareça um objetivo simples, o caminho é longo. Mas elas estão preparadas. Sempre estão. Fortes e corajosas, as mulheres são predestinadas e têm um potencial que não cabe nelas. Como muitas das entrevistadas para esta matéria mencionaram, são multitarefas. Algo que até o Google reconhece. Dúvida? Escreva na barra de buscas a palavra multitarefa e veja a imagem que aparece. Se tudo correr bem, surgirá na tela uma mulher desempenhando várias funções.


Se até os algoritmos da ferramenta de buscas mais acessada do mundo entendem e apresentam esse potencial, como há quem duvide, menospreze ou julgue a mulher inferior? A professora e socióloga da USP Maria Arminda destaca que a desigualdade de gênero não é a única no mundo, mas talvez a mais antiga. Essa exclusão ou menosprezo à figura da mulher, na maioria das vezes, é estimulada por um homem, ela lembra.


“Os homens são filhos de mulheres e, quando viram adultos, começam a discriminar. São filhos, foram educados por mulher, receberam amor da mãe, então, é uma coisa a se pensar. A discriminação de gênero não é a única no mundo, mas talvez seja a mais antiga.”


No Dia Internacional da Mulher, celebrado nesta segunda-feira (8), A Tribuna traz histórias de diferentes gerações, trajetórias e lutas. Em comum, todas ressaltaram o prazer que é ser e se sentir mulher.


Adriana Koide - 34 anos, empresária e fundadora da marca AdrianaK


Adriana Koide - 34 anos, empresária e fundadora da marca AdrianaK. Foto: Vanessa Rodrigues

Formada em Comércio Exterior, Adriana deixou a área após ficar desmotivada com o arrefecimento das exportações. Em 2015, na Capital, comprou sapatos por menos de R$ 100,00 e os revendeu às amigas, que gostaram e fizeram novas encomendas. Aquilo a levou a empreender no ramo, pesquisar sobre o mercado de sapatos e contatar fábricas e fornecedores. Hoje, possui três lojas abertas na região. A veia empreendedora revela a força de vencer das mulheres e afasta títulos negativos. “Por mais que muitas coisas tenham mudado com os anos, a mulher ainda é vista muito como o sexo frágil. Talvez esse seja o principal desafio, a gente sempre ter que provar que não é mais isso”. Graças às lutas, Adriana observa que o cenário tem mudado. “Ainda tem muito o que evoluir, mas melhorou bastante.”



Edith Pires Gonçalves Dias - 101 anos, escritora e membro da Academia Santista de Letras


Edith Pires Gonçalves Dias - 101 anos, escritora e membro da Academia Santista de Letras. (Foto: Alexsander Ferraz)

A idade para esta mulher só agregou experiência, que ao longo da vida foi contada por diversas vezes por meio de livros. Edith morou boa parte da vida no casarão branco em frente à praia que hoje abriga a Pinacoteca Benedicto Calixto e viveu momentos marcantes da história da Cidade. Uma passagem marcante envolveu o médico e poeta Martins Fontes, que ao visitar a casa da família de Edith para atender a mãe, Zulmira, que havia levado um tombo, ficou paralisado diante dos olhos azuis da menina de 2 anos, em pé, no berço, e pediu um tempo para escrever um poema. Apesar de tudo, a Dama de Santos lembra que, na época da juventude, a mulher tinha dificuldade de se encaixar na sociedade. “Muitas profissões não eram reconhecidas para as mulheres, achavam que eram apenas para homens. E tinha muita mulher preparada. A sociedade era mais machista e havia restrição. No tempo em que eu era moça, raramente se encontrava uma mulher advogada ou engenheira”. Ela observa que hoje é muito mais difícil a vida da mulher, que tem que se dividir entre trabalho e os afazeres de casa. Edith demonstra prazer e orgulho em ter tido dois filhos, que depois lhe deram quatro netos e quatro bisnetos. “Eu acho que não errei em nada como mulher. Procurei cumprir minhas missões como dona de casa, como mãe, como avó e me tornei uma pessoa assim, embevecida (encantada) pelos descendentes que eu deixei.”


Nicole Marussi - 17 anos, camisa 10 do time de base das Sereias da Vila


Nicole Marussi - 17 anos, camisa 10 do time de base das Sereias da Vila. (Foto: Divulgação/Santos FC)

Jovem, atleta e cheia de ambições, Nicole carrega consigo o peso da camisa 10 do time feminino do Santos nas categorias de base, já defendeu a Seleção Brasileira e, mesmo assim, encara o preconceito por ser mulher num esporte dominado por homens, no país do futebol. “Somos todos os dias menosprezadas no futebol, principalmente pelos homens. Mas driblo isso me dedicando aos treinos e procuro mostrar em campo que somos capazes de mostrar um futebol arte com muita alegria, categoria e respeito”. Para a promessa da base santista, vive-se no esporte um reflexo do que a mulher enfrenta na sociedade. “Desigualdade salarial, violência sexual, feminicídio e baixa representatividade política”. Entretanto, como é possível notar pelas escolhas dela, ao contrário do que muitos possam pensar ou fazer para prejudicá-la, “ser mulher é ser forte e especial. É ser abençoada por Deus por podermos gerar outra vida dentro de nós. Somos guerreiras. Eu tenho um imenso prazer em ser mulher. E o lugar da mulher é onde ela quiser!”


Taiane Miyake - 53 anos, responsável pela Coordenadoria de Diversidade do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania de Santos


Taiane Miyake - 53 anos, responsável pela Coordenadoria de Diversidade do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania de Santos. (Foto: Alexsander Ferraz)

Mulher transexual, Taiane revela que a história dela não é diferente de tantas outras travestis e transexuais. “Fui colocada para fora de casa pelo meu pai aos 19 anos e tentei o suicídio. O diferencial
da minha história é que, na ocasião, eu já estava em uma universidade e cursava Jornalismo, diferentemente da maioria das outras, colocadas na rua com menos idade. Mas isso não me faz diferente das demais. Com formação técnica em Contabilidade, sofri com a falta de chances e tive a prostituição como forma de sobrevivência. Busquei outras atividades e me reinventei, mesmo vivendo de subempregos”. Para ela, o principal desafio “é conscientizar as pessoas de que o sexo não pode ser reduzido à genitália, e é assim que ainda somos vistas. Ignora-se que uma coisa é sexo, outra é gênero”. Mesmo diante das adversidades e lutas diárias, ela ressalta a satisfação em “estar mulher”. “Baseada na filósofa Simone de Beauvoir, sempre digo que não sou mulher, ‘eu estou mulher’. Ao contrário do que as pessoas falam ou pensam, eu não me deixo abater, me reconheço e me identifico como uma mulher. Tenho muito orgulho da mulher que me tornei.”


Gilze Francisco - 60 anos, presidente do Instituto Neo Mama e das redes Feminina Estadual e Nacional de Combate ao Câncer


Gilze Francisco - 60 anos, presidente do Instituto Neo Mama e das redes Feminina Estadual e Nacional de Combate ao Câncer. (Foto: Alexsander Ferraz)

Fundadora do Instituto Neo Mama, local de acolhimento a mulheres com câncer de mama, a enfermeira enfrentou a doença e ajuda tantas outras mulheres a passarem por esse momento de dificuldade de forma mais leve e com orientação. Segundo ela, o principal desafio em ser mulher “é ser forte e corajosa sem perder a sua essência”. “Acho que as pessoas confundem a mulher forte e a fortaleza feminina com falta de sensibilidade. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Você pode ser forte e sensível, empoderada e com momentos de fragilidade normais”. Apesar das batalhas travadas, ela reforça o prazer em ser do gênero. “A mulher tem sensibilidade e intuição únicas. Isso faz com que ela consiga se multiplicar sem muita dificuldade e tenha um olhar multifacetado em cima de uma mesma perspectiva. O meu maior prazer é perceber o quanto podemos nos multiplicar e o tamanho do nosso potencial.”



Lugar de fala no centro do debate


Em algum momento durante a leitura deste texto, você pode ter se perguntado: por que um homem escreveu a matéria? Seria falta de sensibilidade? Nada disso! A professora e socióloga da USP Maria Arminda, que coordena o Escritório USP Mulher e já foi pró-reitora da universidade, explica o conceito de lugar de fala tão utilizado hoje em dia.


“Quem disse que só uma pessoa específica pode falar sobre certos assuntos? O lugar de fala (da forma como tem sido usado) é um entendimento todo errado. O que é lugar de fala? É o seguinte: do lugar onde eu me encontro, vejo esse assunto assim. Aqui no Brasil, está sendo usado para impedir que outro fale. A verdade é a seguinte: não é possível ter uma pauta civilizada se esta for em cima de exclusão.”


Maria ressalta que tais situações só permitem a exclusão, situação que para ela é “equivocada e absurda”, podendo prejudicar movimentos ativistas. “É um passo atrás. Você está discriminando. É um equívoco absoluto.”


Desigualdade


Maria Arminda aponta que o Escritório USP Mulheres é uma instituição voltada à construção de políticas de igualdade de gênero na universidade e, portanto, de refletir as questões de desigualdade. Nele, são pensados protocolos e campanhas na universidade com o objetivo de que transbordem à sociedade.


Um exemplo está na bolsa oferecida pela USP para elaboração da tese. As pesquisadoras que vierem a ser mães terão afastamento e auxílio por seis meses (mesmo período da licença-maternidade), e não mais por quatro. A questão da maternidade, inclusive, é citada por ela como um dos principais motivos de desvalorização da mulher no mercado de trabalho.


“Essa é uma das maiores injustiças existentes no mundo. Quem que vai garantir a reprodução do gênero humano? É um contrassenso absoluto. É uma das expressões piores da desigualdade.”


Direitos Humanos e ativismo


A socióloga aponta que a desigualdade de gênero está inserida no guarda-chuva dos direitos humanos, como as questões étnicas e raciais. Todos igualmente importantes para que se chegue à democracia. Sobre o movimento e ativismo, ela ressalta a importância das ações — com as cautelas citadas acima — porque são lutas que fazem a pauta social avançar. Porém, destaca que os movimentos devem ser coordenados. “O ativismo é um ponto de partida e tem de estar mediado por camadas (de pesquisas como a universidade) para a elaboração de políticas públicas.”


Gênero


De acordo com Maria Arminda, gênero se trata de uma categoria relacional. “Você só define o gênero na relação com o homem. O gênero não é a substância. Entre os direitos humanos, só dois ou três são de substância. O primeiro é o direto à vida, e isso é inegociável; outro é direto à liberdade, que deve ser inegociável; ainda há o de não ser torturado”. Ela continua: “Agora, os outros são relacionais: o meu (direito) tem uma relação com o direito do outro. Não pode ser absoluto e independente de qualquer coisa. No caso do direito das mulheres, ele tem que se exprimir também, numa relação com os homens. Você não pode excluir atores sociais, pessoas da sociedade. Eles são parte disso. É um processo que envolve homens e mulheres”.


Reflexão


“Quem disse que sou o repositório de toda a verdade? Com essa ideia, nós eliminaríamos na história da cultura, da ciência, da vida intelectual, figuras notáveis. Por exemplo, o (Karl) Marx não poderia ter falado pela classe trabalhadora porque ele não era. Florestan Fernandes não poderia ser branco, como 
era, e mostrado a saída do racismo estrutural, para usar uma expressão contemporânea" - Maria Arminda, professora e socióloga da USP.


Elas falam nas principais batalhas


“Acho que melhorou bastante (a questão da igualdade), apesar de que ainda precisa evoluir mais. Hoje em dia, as crianças já estão convivendo com a diferença e está sendo mais fácil lidar sobre esse assunto com eles. Essa luta já reflete em quem é mais novo, as crianças já vivenciam tudo isso, e (a igualdade) pode se tornar algo natural no futuro” - Vanessa de Almeida Teixeira, 40 anos, professora da rede pública


“Eu trabalhei como faxineira e nunca tive problema, mas dei sorte, porque já escutei muitas coisas que não convém falar. Não é normal, porque, se estamos para fazer um serviço, temos que ser respeitadas e respeitar, pois é seu lugar de trabalho” - Nara Jussara Duarte, 62 anos, desempregada


“Graças a Deus, nunca tive problemas, como ser tratada diferente por ser mulher. Por isso, para mim, não há diferença. Entretanto, pelo que vemos que acontece por aí, a situação ainda pode melhorar (para as mulheres) em relação a mais oportunidades de trabalho” - Cícera Ramalho, 62 anos, desempregada


“Sou muito respeitada. Tenho 65 anos, sou uma pessoa ativa, dinâmica, e para mim está tudo muito bem. A mulher está se saindo muito bem, pois sabe se impor, sabe andar e por onde anda. A situação melhorou muito de uns 20 anos para cá” - Helena Rodrigues, 65 anos, dona de casa


“Para nós não é nada fácil, mas estamos subindo, degrauzinho por degrauzinho, ainda mais para mim. Sou mãe solteira de quatro filhos. Foi uma vida muito difícil, mas me sinto uma vitoriosa por ter criado meus filhos e pagar uma faculdade a eles. Trabalho desde os 7 anos, quando vendia verduras. Tive carrinho de pipoca, depois uma barraca e, agora, uma lojinha” - Andrea de Souza Nogueira, 49 anos, comerciante


“A gente sofre muitos abusos e é difícil. Muitas vezes, assumimos o papel de homem em casa. No meu caso, sou mãe solteira, o pai dele (filho) se suicidou, não me deixou pensão, sou sozinha, desempregada e trabalho fazendo faxina. Meu filho é especial e, quando consigo um trabalho, fica muito difícil porque não tem escola para deixá-lo na pandemia” - Francielle de Paula, 38 anos, desempregada


“A mulher tem conquistado espaço, mas para muitas ainda é muito difícil. E para as pessoas negras também é pior. O País precisa conscientizar mais. Eu, sempre que saí para arranjar emprego, acabei conseguindo, mas tenho amigas que ficaram até três anos desempregadas. Hoje, não trabalho mais, pois sou casada, tenho filho e sou dona de casa” - Nair Ribeiro de Sousa, 52 anos, dona de casa


“Acabou o preconceito. Não existe mais área masculina e feminina, o que existe é a gente se capacitar e buscar o nosso espaço. Quando comecei na minha área, a primeira coisa que tive que quebrar foi o meu próprio preconceito, porque somos criadas num mundo machista. Vou falar o que digo a mim mesma: eu posso, sou capaz e eu consigo! Temos que acreditar em nós” - Adriana Lopes Damasceno, 45 anos, operadora de ponte rolante


“Temos muitas dificuldades a serem vencidas, mas as lutas têm avançado. Mesmo assim, ainda enfrento preconceito, pois tem homem que não respeita o espaço da mulher. Creio que, no século em que vivemos, essa questão deveria estar mais avançada do que está. A mulher tem seu espaço, que foi conquistado, e ainda há muito o que conquistar. Estamos no caminho” - Cristiane Medeiros Silva, 29 anos, comerciante


“Apesar de termos avançado bastante em vários desafios, ainda existe preconceito. Por muito tempo trabalhei como assistente social, então sei bem que ainda existe essa diferença. Não só da parte do profissionalismo, como a questão da diferença salarial. Infelizmente, ainda existe isso. Mas o sexo não difere em nada, tem que ver a capacidade da pessoa” - Adriana Rocha Lopez, 48 anos, assistente social


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