Edital para livro didático ignora itens éticos e causa polêmica

Especialistas criticam ausência de menção a racismo, sexismo em questões de gênero e violência contra a mulher

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  20/02/21  -  21:35

O novo edital para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) vem causando polêmica. Publicado semana passada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ligado ao Ministério da Educação, o edital recebeu críticas por não mencionar racismo, sexismo em questões de gênero e violência contra a mulher, por exemplo. O anterior, de 2019, é explícito ao condenar essas práticas.


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“O não-posicionamento é um posicionamento. Isso representa um grande retrocesso”, afirma Alcielle dos Santos, 43 anos, mestra em formação de professores pela PUC-SP e que atua na Cooperativa de Professores Cipó Educação. “A gente tem que entender essa omissão como uma decisão. E uma decisão contra os direitos humanos”.


O edital PNLD prevê a compra de livros didáticos e literários para alunos e professores do 1º ao 5º anos do Ensino Fundamental, para utilização na rede pública a partir de 2023.


Insegurança


Alcielle relembra que o País vive um aumento nos casos de feminicídio, especialmente após a eclosão da pandemia. No primeiro semestre de 2020, no auge do isolamento, 648 mulheres foram mortas no País, segundo o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de outubro do ano passado. Esses dados colocam o Brasil como o quinto do mundo em que mais se mata mulheres por motivação relacionada a gênero. “Há essa tendência de aumento da violência contra a mulher, e a gente vê se retirar a ênfase a isso (no PNLD)”, critica Alcielle.


Ela também aponta incongruências entre o texto do edital e a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), peça que indica as diretrizes do ensino no País. “A Base prevê que se discuta gênero e questões étnico-raciais, por exemplo. Então temos um edital que, de certa forma, concorre com a BNCC. Isso gera insegurança”.


Educação


A advogada Thaís Perico, do primeiro escritório de advocacia para mulheres da Baixada Santista e conselheira jurídica da ONG Hella, que acolhe, orienta e dá suporte a mulheres vítimas de violência, também considera a omissão desses itens no edital um retrocesso. “Tínhamos a questão explícita, vinculada ao conteúdo, agora foi retirado, é um passo atrás. A educação é fundamental contra a violência”.


Como exemplo desse papel nevrálgico da educação no combate à agressão contra mulheres, Thaís relembra uma jornada de palestras de que participou, durante uma semana, com todas as turmas do Senac, em Santos.


Após o final de um bate-papo, em que explicou as formas de abuso e violência, um aluno de 16 anos se aproximou e confessou estar sendo abusivo com a namorada, mas sem o saber. Ele então agradeceu pela palestra e que iria ter outra atitude.


“Ele contou que, certa vez, eles estavam para sair, mas a convenceu a voltar pra casa e trocar de roupa, porque ele achava que a saia estava curta. Ele não fez por mal, ele cresceu vendo isso e acaba reproduzindo”.


Via assessoria de imprensa, a Reportagem entrou em contato com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação sobre as críticas e questionamentos em relação ao edital PNLD, mas não obteve nenhuma resposta.


Ministro no Twitter


O ministro da Educação, Milton Ribeiro, se manifestou sobre as críticas em uma série de postagens na sua conta no Twitter. “A questão da violência contra a mulher é abordada na BNCC no 9º ano, na disciplina História, mas não na alfabetização ou no restante dos anos iniciais. Isso foi uma escolha feita pelo CNE (Conselho Nacional</CW> de Educação) em 2017 e está claramente descrita (na BNCC)”.


Sobre os conteúdos relacionados ao combate ao racismo, o ministro escreveu que também são incluídos na disciplina de História, nos 8º e 9º anos. E que o edital prevê o respeito a toda legislação nacional sobre o tema, encerrando que os livros didáticos deverão “promover valores cívicos, como o respeito, patriotismo, responsabilidade e honestidade, bem como o respeito aos mais velhos”.


Fora de contexto


Patrícia Geampaulo, mestra em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, contesta Milton Ribeiro. Segundo ela, a violência contra a mulher, bem como racismo e questões de gênero, está prevista na BNCC durante todo o período escolar, em um processo em espiral, com interrelação de disciplinas e de acordo com cada faixa etária.


“Ele (ministro) fez um recorte fora de contexto. No 9° ano, os alunos vão analisar as causas da violência contra a mulher. Lá, eles já serão maduros para análises. Mas eles só serão capazes de analisar alguma coisa se já estiverem familiarizados com o tema”.


Cita como exemplo a proposta da BNCC para que a disciplina de História, no 6º ano, aborde os diferentes papéis da mulher nas sociedades. “Os editais anteriores têm uma proibição clara contra todo tipo de discriminação. Esse deixa em aberto e vai permitir leituras múltiplas”.


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