Coronavírus e o mundo: 'O que está em jogo é a segurança internacional, sanitária'

Gilberto Rodrigues, coordenador da pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, aponta impactos políticos, econômicos e sociais da doença no planeta

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  06/04/20  -  00:40
  Foto: Alberto Marques/Arquivo

A pandemia cobriu o mundo de incerteza. Em meses, milhares de vidas já foram perdidas para o coronavírus, hábitos deixados de lado e os contatos, restritos, vêm se reinventando. Óbvio, esse panorama afeta as relações entre os países e como cada um deles se insere no tabuleiro global.


Nesse contexto delicado, para Gilberto Rodrigues, coordenador da pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, o Brasil atravessa o tom no discurso e em atos de seu presidente, Jair Bolsonaro. A pandemia também deve influir – e muito – no rumo das eleições norte-americanas, ano que vem. Rodrigues também lembra, e teme, pela África, onde o vírus ainda não se manifestou com a força de outras partes do mundo.


Ele crê que o continente deve sofrer muito se for abatido pela Covid-19. Do mesmo jeito, o impacto na economia global já apresenta reflexos políticos e sociais, alguns até benéficos. Leia a seguir os principais pontos da entrevista, exclusiva.


Na sua avaliação, como a pandemia afeta as relações entre os países?


O primeiro grau de afetação é no próprio sistema capitalista, na economia. A declaração como pandemia, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), impôs uma condição de reclusão, mexeu no funcionamento normal do sistema, impactando a mobilidade de pessoas, bens e capitais. Houve proibição de entrada e trânsito de pessoas, redução também na mobilidade de cargas, não temos um sistema em que as cargas são transportadas por robôs; todos os modais exigem a presença humana. Com essas paradas, o trabalho fica numa situação ruim. Do ponto de vista das relações, é um cenário muito novo. Apesar de já termos experimentado epidemias antes, pela primeira vez isso se dá em uma escala tão global. E se nós considerarmos que temos hoje uma ciência e uma tecnologia desenvolvidas e, ainda assim, com todo esse avanço, não conseguimos impedir que o mundo parasse... isso gera um grande impacto.


A médio prazo, quando superarmos a crise sanitária, você acha que esse impacto irá abalar ou modificar as relações?


A economia tem um papel majoritário. Há uma tendência (nas engrenagens) de funcionar. Só que agora o 'majoritário' é parar mesmo, senão as pessoas vão morrer em grande quantidade. Até aqueles chefes de estado, de governo, líderes empresariais que, a princípio, defendiam que não se parasse, dentro do bom senso e da racionalidade, estão defendendo o contrário. Mas como não há previsão de quando a crise há de acabar, coloca-se um grande abalo sistêmico na economia, que se conecta, claro, às questões política e social. Na política, há duas dimensões. Uma delas eu chamaria de mais benéfica, ligada às organizações internacionais e o seu papel nas políticas nacionais. Embora a onda neonacionalista venha se posicionando contrariamente a qualquer tipo de ação ou política internacional vinda de organizações como a OMS, OMC (Organização Mundial do Comércio) ou a própria ONU, é flagrante, hoje, a centralidade da OMS na conduta dos países e na determinação de ações durante a pandemia.


Por que isso é benéfico?


Porque é necessário haver uma coordenação isenta, ter um pacto global. É necessário que os países cumpram com essas recomendações, que passam a ter um caráter vinculante entre as nações.


Essa coordenação é algo previsto em acordos no âmbito da ONU, para situações do tipo, ou foi algo que se impôs nesta crise?


Na saúde pública, existe uma centralidade maior da OMS. Sim, os países que aderem às organizações e acordos estão submetidos às suas normas. Em uma situação como essa, outros mecanismos do Direito Internacionl entram em cena para obrigar os estados a seguir essas normas. O que está em jogo é a segurança internacional, sanitária.


Há, por parte da extrema-direita, uma tendência a negar os avanços científicos e, por conseguinte, neste momento, o que apregoa a OMS. É o caso do presidente Bolsonaro. O que isso pode acarretar?


O fato de o presidente Bolsonaro ir na contramão do que a OMS apregoa, e esta o faz baseada em evidências científicas, e não em questões ideológicas, é bom que se frise, está gerando um isolamento do Governo brasileiro nas ações lideradas pela OMS e um isolamento também nos grupos multilaterais dos quais o Brasil participa nas Nações Unidas. Sobretudo no questionamento ao multilateralismo, Bolsonaro é uma cópia mal feita de (Donald) Trump (presidente dos Estados Unidos). Neste momento, até Trump tem recuado quanto à negação do multilateralismo e das evidências científicas, está deixando de lado seu discurso ideológico diante do quadro catastrófico da pandemia. Com a experiência da China, da Itália, da Espanha e, agora, dos próprios Estados Unidos, que sofreram antes os efeitos do coronavírus, a expectativa é de que o Brasil siga as recomendações da OMS, e das próprias autoridades de saúde nacionais, e adote o isolamento social horizontal. As evidências mostram que a prática pode diminuir substancialmente a disseminação da doença. Isso é feito desde a Idade Média. Quando houve a peste, lá pelo ano 1300, as pessoas ficavam trancafiadas em casa, as cidades eram fechadas. São procedimentos que, mesmo antes de a ciência demonstrar, eram intuitivamente praticados. Quem defende só o isolamento vertical tem em vista apenas a economia, muitas vezes guiado por uma questão ideológica.


É possível ocorrer alguma sanção por conta do desrespeito às recomendações da OMS?


A questão é gravíssima. Quando o presidente diz que todos podem sair de casa, trabalhar, isso pode ser lido como incitação ao descumprimento de uma norma, afrontando de forma grave os Direitos Humanos. Uma das consequências que poderia recair sobre o presidente Bolsonaro, por exemplo, nessa questão, seria uma denúncia ao Tribunal Penal Internacional (TPI) por genocídio social ou crime contra a humanidade. (isso já ocorreu: a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia protocolou no TPI, na quinta-feira, uma representação contra o presidente, por crime contra a humanidade).


Mas o presidente Bolsonaro parece isolado nessa incitação, até mesmo pelo seu próprio governo...


A gente está observando que os ministros, e o próprio vice-presidente (Hamilton Mourão, PRTB), tentam se descolar do que o presidente fala - isso é uma forma de não ser acusado ou de omissão ou conivência. O que está valendo perante a comunidade internacional, em relação ao Brasil, é a postura de governadores, de entidades, da sociedade, que está exercendo uma certa desobediência civil, ao descumprir o que o presidente está sugerindo.


Mudando o eixo da pandemia: muito se fala da Ásia, da Europa, das Américas, mas pouco ou nada se vê sobre a África. A doença ainda não chegou lá ou temos aqui mais um exemplo das relações centro-periferia?


A África corre o risco de sofrer uma grave crise humanitária. À exceção da África do Sul, que tem uma perspectiva econômica melhor, os demais países devem sofrer muito. E esse sofrimento não será sequer noticiado, porque não haverá cobertura. Isso tem a ver com a relação centro-periferia. O que acontece nos países do centro, Estados Unidos, Canadá, Europa e alguns asiáticos, é muito mais valorizado. O que está na periferia é menos valorizado, menos conhecido, muitas vezes desprezado.


Como você analisa a situação da Hungria? Houve um 'excesso de zelo' do primeiro-ministro Viktor Orbán?


A crise do coronavírus, para alguns chefes de governo, dá oportunidade de criar estados de exceção muito mais invasivos do que eles poderiam fazer numa situação normal, tendo de lidar com a opinião pública, com a imprensa, até com a pressão de outros países. Na Hungria, Orbán foi o primeiro a instituir um estado de exceção absoluto, com poderes tremendos de intervir na vida do cidadão. Normalmente, em crises sanitárias, o estado tem esse poder, exercido pelas vigilâncias sanitárias, de fechar estabelecimentos e entrar na propriedade privada. No caso da dengue, no Brasil, é o que acontece, mas de forma democrática, com autorização expressa e dentro das leis. Agora, num governo, como no caso da Hungria, que já tem matiz muito mais autoritário, o temor é de que essas medidas sejam usadas para sufocar a oposição e perseguir adversários.


Como essa crise pode influir na eleição norte-americana? E como essa influência depende do comportamento do presidente Trump, que tenta a reeleição?


Terá um grande impacto. A problemática da saúde será um grande tema de campanha. O Trump acabou se convencendo, mudou a posição dele, ouvindo a opinião da comunidade médica. Acho que há um pouco de cálculo, de que esse tema é mais caro ao Partido Democrata e deve levar o (Joe) Biden (pré-candidato democrata) mais à esquerda do que está hoje, próximo de (Bernie) Sanders (outro pré-candidato democrata), cujas marcas são o acesso mais universal de educação e saúde.


Me corrija se eu estiver errado: a política externa do presidente Bolsonaro rompe com alguns paradigmas da tradição brasileira. Como você avalia isso?


Você está certo. Quem esperava que a política externa do Bolsonaro seria uma oposição ao que foi a da Dilma (Rousseff) ou do (Luiz Inácio) Lula (da Silva), foi surpreendido porque a oposição que o Bolsonaro faz é em relação a toda a tradição que o País tem nesse campo desde o Barão do Rio Branco. Os princípios da não intervenção, da reciprocidade, do prgamatismo diplomático, que sempre foram marcas fortes nossas. Se pegarmos um recorte, a partir da redemocratização, apesar das diferenças de partido, a diplomacia veio num crescendo na defesa dos Direitos Humanos, do meio ambiente, de um comércio justo, respeitando as desigualdades entre os países. O governo Bolsonaro viola muitos princípios diplomáticos, previstos no Artigo 4º da Constituição. Por exemplo, quando o País não aplica o princípio da reciprocidade aos Estados Unidos, esperando que os Estados Unidos aprovem a entrada do Brasil na OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) ou viola o princípio da não intervenção, ao apoiar, ainda que de maneira não expressa, a intervenção militar na Venezuela. Esses fatos são vistos por intérpretes e embaixadores, independentemente de seus vieses ideológicos, como grave desconstrução da política externa brasileira.


Por tudo isso, como o Brasil é visto no mundo?


Deixou de ser confiável em termos diplomáticos. Nas mesas de negociação, o Brasil sempre teve papel preponderante na mediação. Hoje, o País está atrelado ao trumpismo, não é nem aos Estados Unidos, que é uma imagem negativa. Trump não é aparentemente alguém que respeita os que estão sempre submissos a ele. Veja a Coreia do Norte: ele tem grande apreço pelo presidente (Kim Jong-un), que é um inimigo dos países ocidentais, por ser um oponente à altura. Agora, uma área em que o Bolsonaro quer se demarcar de maneira muito clara é a ideológica, da ultradireita internacional. Nessa área, ele não tem nenhum tipo de vacilo, é muito claro: “estamos tentando construir uma referência e o Brasil quer contribuir para isso”.


Voltando ao coronavírus: você acha que o mundo emergirá melhor da pandemia?


A cooperação técnica e humanitária está na Carta da ONU, acima das ideologias, das preferências e colorações políticas. Isso está acontecendo. E uma coisa que estava sendo bombardeada pelo Trump e pelos ultraideológicos de direita era o princípio da cooperação. A reviravolta dos Estados Unidos mostra que a cooperação é, sim, muito importante.


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