Em um dia infestado de declarações dispensáveis e grosseiras, o presidente Jair Bolsonaro investiu no caminho abominável da politização da vacina da covid-19. A começar pela comemoração, na terça-feira, via redes sociais, de que, referindo-se a ele próprio em terceira pessoa, a suspensão das pesquisas no Instituto Butantan por ordem da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) era “mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. O ato de se vangloriar, inapropriado para a envergadura do mais alto cargo do Poder Executivo, se mostrou desrespeitoso e injusto ao ser revelado que a morte de um dos voluntários do estudo não estava relacionada a efeito nocivo do imunizante, mas a um trágico suicídio.
Porém, o presidente continuou ao longo do dia com uma sequência de afirmações insensíveis, dizendo que o Brasil tem que deixar de ser um “país de maricas” e enfrentar a covid-19, repetindo a aversão ao isolamento social como arma contra o coronavírus. “Todos nós vamos morrer um dia”, comentou, aliás em uma desconsideração com as 163 mil vítimas fatais – a grande maioria sem condições de ter passado por hospital de ponta e confortável com médicos de primeiro time.
Também tentou expor valentia ao dizer que Joe Biden é “candidato à chefia de Estado”. Por que deveria o governante brasileiro tomar partido no desfecho eleitoral americano, de resultado bem claro nas urnas frente a uma argumentação de fraude fantasiosa e sem provas?
Bolsonaro não citou o nome de Biden, mas na prática rebateu as ameaças de retaliação comercial que o americano fez na campanha se o Brasil não combater a destruição da Amazônia – somente um negacionista contumaz poderia afirmar confiante que ela está preservada. O brasileiro admitiu não achar a diplomacia suficiente, pois “quando acabar a saliva, tem que ter pólvora”. Com esse discurso, o que se teme são conflitos com uma potência que pode caminhar sem o Brasil, mas que no caso brasileiro seu parceiro histórico é indispensável. Os EUA, diferente da China, tradicionalmente adquirem mercadorias de maior valor agregado.
Mas a urgência do momento é derrotar a pandemia. O que preocupa é que o presidente vê a doença como entrave eleitoral. Seus olhos estão em 2022, mas há ainda muito trabalho a realizar. No caso da suspensão da pesquisa no Butantan, o reflexo mais grave é de que a Anvisa daqui para frente terá sempre que dar explicações sobre interferência política – de imediato, o órgão foi questionado pelo STF.
Bolsonaro prestou desserviço ao ignorar a ciência e levantar dúvidas sobre a vacina chinesa (“morte, invalidez, anomalia”, disse ele). Disseminar desconfiança é um artifício inaceitável, ainda mais dentro de um jogo político. O momento é muito delicado, com a economia em hora de retomada e contas públicas perigosamente ameaçadas pela ruína. As vacinas, e não uma ou outra, serão essenciais para abreviar a pandemia. Sem isso, não haverá paz para o País se recuperar.